Leigos Missionários Combonianos

Luzes e Escuridão

Etiopia

Partilhar o amor de Deus com os demais, receber e dar, determinaram a nossa vocação missionária (Irmã Vicenta Llorca, Irmã Missionária Comboniana há mais de 40 anos na Etiópia e Pedro Nascimento, Leigo Missionário Comboniano, há dois anos na Etiópia). Tal como fez com Abraão, também a nós, através da oração e discernimento pessoal, Deus disse: “Deixa a tua terra e vai para a terra que eu te indicar” (Gen 12,1). O nosso destino foi a Etiópia, país cheio de sol e de hospitalidade. A Etiópia é um país lindíssimo, com uma grande riqueza histórica e cultural, cheio de tradições e com imensos povos, com grande diversidade linguística.

Etiopia

Benishangul-Gumuz faz parte de uma das regiões da Etiópia e uma das suas tribos aqui presente é a dos Gumuz, gente de carácter forte, disposta a lutar para defender-se em muitos sentidos. O nosso trabalho missionário é especialmente desenvolvido entre os Gumuz.

O nosso primeiro impacto foi muito bom, pois sempre quisemos partilhar a nossa vida com gente simples, como esta. A comunidade das Irmãs Combonianas, situada em Mandura, oferece serviços como a educação, a saúde e a pastoral catequética. A comunidade dos Leigos Combonianos (David Aguilera e Pedro Nascimento) vive com os Missionários Combonianos, em Guilguel Beles, a 10 quilómetros de distância de Mandura e procuram auxiliar ambas as comunidades nas áreas da educação e pastoral catequética, bem como no acompanhamento de alguns doentes.

Etiopia

Nós, Ir. Vicenta e Pedro, trabalhamos na pastoral e no serviço social, pois uma pessoa completa-se desenvolvendo alma e corpo. Uma das actividades que realizamos juntos é o acompanhamento da catequese das mulheres no seu desenvolvimento espiritual, humano e material. Sabemos que a mulher tem um papel importante na transformação da sociedade e aqui elas precisam de descobri-lo. A mulher Gumuz trabalha imenso e é muitas vezes negligenciada nas oportunidades tais como a educação, onde o aproveitamento escolar não é uma prioridade, especialmente, para as mulheres e raparigas. Estas têm, especialmente, que trabalhar no campo, apanhar lenha para cozinhar, carregar água do fontanário ou do rio, carregar pesados sacos com cereais (fruto do trabalho do campo), cuidar dos filhos, cozinhar… A vida da mulher Gumuz é difícil e cheia de sacrifícios e de trabalho árduo.

Reunimo-nos todas as semanas com um grupo de mulheres e elas elegeram um nome para o grupo: “Construtoras da Paz”, nome devido à situação de guerra que temos vivido por mais de dois anos, na nossa zona. Neste grupo partilhamos a Palavra de Deus, rezamos pela paz e tomamos juntos um café com a colaboração económica de todas, e fazemo-nos próximos nas experiências de dor e sofrimento que vivemos, fortalecemos a amizade, partilhamos sonhos e aspirações para o futuro. Estes encontros dão-nos a possibilidade de nos conhecermos e estar mais perto uns dos outros. É nosso desejo, segundo as nossas possibilidades, desenvolver actividades que possam ajudar as mulheres na parte económica, já que elas têm um papel importante na manutenção da família.

Tudo isto é muito bonito e atractivo, mas a vida humana está composta de tempos felizes e tempos dolorosos, dias de luz e dias de escuridão.

Devido a confrontos étnicos, sobretudo pela posse da terra, a estabilidade social piorou, muitos foram mortos, aldeias foram queimadas, algumas colheitas foram roubadas por oportunistas, muitos inocentes postos na prisão sem saber os motivos, as escolas e postos médicos fechados devido à insegurança, temendo que os estudantes sejam atacados pelos rebeldes e os professores e enfermeiros atacados e sequestrados, já que a maioria deles pertencem a outro grupo étnico. Infelizmente esta tem sido a nossa realidade nos últimos dois anos vivendo-se, ora momentos de paz, ora momentos de conflitos e insegurança. Porém, quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao Senhor (Rom 14,8) e Ele connosco sempre está e nos acompanha.

Etiopia

Na missão das Irmãs, algumas mulheres pediram a protecção por umas semanas, ficando lá a dormir. A situação piorou e decidiram escapar para o bosque onde se podiam esconder. Quando a situação se acalmou, pouco a pouco, as famílias foram regressando às suas cabanas. Como referimos, anteriormente, esta situação tem-se repetido por dois anos e juntos experimentamos a dor, a insegurança mas também a protecção de Deus. As obras de Deus nascem e crescem aos pés da Cruz, dizia São Daniel Comboni.

Nada disto estava contemplado quando cheios de ilusão, chegámos a esta missão, mas decidimos fazer causa comum com este povo, partilhando os momentos bons e os maus, decidimos permanecer aqui e abandonarmo-nos nas mãos de Deus. Viveram-se tempos muitos difíceis e a nossa presença aqui, no meio das dificuldades, pretende ser testemunho da fidelidade a Deus manifestada na fidelidade ao povo com quem partilhamos a vida. Foi Jesus quem nos disse: “Eis que estou convosco todos os dias, até ao fim dos tempos” (Mt. 28,20).

No meio da dor, de ver sofrer a gente que escapa, dos que sofrem quando choram os seus entes queridos seja porque estão mortos ou porque privados de liberdade, tudo isto se converteu em tempo de graça que nos ajuda a fortalecer a fé e a fidelidade a um povo que vive tempos de sofrimento. Fazer minha a dor do outro, demonstra-nos o quanto o outro é importante para nós, o quanto lhes queremos bem. Ensinava São Daniel Comboni, faço causa comum convosco e o dia mais feliz da minha vida será aquele em que der a minha vida por vós.

Neste momento fazem-se negociações de paz entre o governo e os grupos rebeldes, as escolas e postos médicos (alguns) começam a abrir. Em nós, há a esperança de que se possam viver momentos de paz, felicidade e prosperidade.

Rezem por nós e por estes povos da Etiópia, pois a esperança não a podemos perder, rezem para que consigamos arranjar suporte para desenvolver actividades económicas com as mulheres e ajudar as famílias em necessidade, rezem pela paz e pela comunhão fraterna.

Etiopia

Vicenta Llorca, Irmã Missionária Comboniana e Pedro Nascimento, Leigo Missionário Comboniano

Repórter Record Investigação: Dossiê Carajás, Corrupção e Descaso (2)

Piquiá

A equipe do Repórter Record Investigação revela como o vai e vem dos trens compromete as casas de quem vive às margens da Estrada de Ferro Carajás e como o pó de ferro das siderúrgicas toma conta de casas e ameaça à saúde de um povoado inteiro.

Piquiá

Nele podemos ver a aldeia de Piquiá de Baixo (a partir do minuto 35) onde nossa família comboniana acompanha de perto esta realidade e a luta por um reassentamento no bairro de Piquiá de la Conquista.

Deixamos esta segunda parte da reportagem da página de Justiça nos Trilhos JnT*

*Justiça nos Trilhos trabalha para fortalecer as comunidades do Corredor de Carajás no nordeste da Amazônia brasileira e para denunciar violações dos direitos humanos e ambientais, responsabilizando o Estado e as empresas e impedindo novas violações dos direitos humanos.

Repórter Record Investigação: Dossiê Carajás, Corrupção e Descaso

tren

Dividido em quatro capítulos, o 1° episódio mostra parte dos impactos que um dos maiores trens de carga do mundo deixa pelas 28 cidades e mais de 100 povoados. A grande reportagem investigativa revela como a riqueza da mineração contrasta com miséria e sofrimento dos vizinhos da ferrovia Carajás, como a falta de passarelas expõe moradores à rotina de acidentes em travessias e como os escândalos de corrupção sangram os cofres públicos de municípios cortados pela EFC.

tren

Nesta reportagem podemos ver a realidade das comunidades atingidas pelos problemas da mineração no nordeste do Brasil onde a Família Comboniana acompanha as comunidades. A nossa comunidade LMC tem presença por mais de 25 anos.

Deixamos esta reportagem da página de Justiça nos Trilhos JnT*

*Justiça nos Trilhos trabalha para fortalecer as comunidades do Corredor de Carajás no nordeste da Amazônia brasileira e para denunciar violações dos direitos humanos e ambientais, responsabilizando o Estado e as empresas e impedindo novas violações dos direitos humanos.

Mensagem do Santo Padre Francisco para o IV Dia Mundial dos Pobres

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«Estende a tua mão ao pobre» (Sir 7, 32)

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«Estende a tua mão ao pobre» (Sir 7, 32): a sabedoria antiga dispôs estas palavras como um código sacro que se deve seguir na vida. Hoje ressoam com toda a densidade do seu significado para nos ajudar, também a nós, a concentrar o olhar no essencial e superar as barreiras da indiferença. A pobreza assume sempre rostos diferentes, que exigem atenção a cada condição particular: em cada uma destas, podemos encontrar o Senhor Jesus, que revelou estar presente nos seus irmãos mais frágeis (cf. Mt 25, 40).

1. Tomemos nas mãos o Ben-Sirá, um dos livros do Antigo Testamento. Nele encontramos as palavras dum mestre da sabedoria que viveu cerca de duzentos anos antes de Cristo. Andava à procura da sabedoria que torna os homens melhores e capazes de perscrutar profundamente as vicissitudes da vida. E fê-lo num período de dura prova para o povo de Israel, um tempo de dor, luto e miséria por causa da dominação de potências estrangeiras. Sendo um homem de grande fé, enraizado nas tradições dos pais, o seu primeiro pensamento foi dirigir-se a Deus para Lhe pedir o dom da sabedoria. E o Senhor não lhe deixou faltar a sua ajuda.

Desde as primeiras páginas do livro, Ben-Sirá propõe os seus conselhos sobre muitas situações concretas da vida, sendo a pobreza uma delas. Insiste que, na contrariedade, é preciso ter confiança em Deus: «Não te perturbes no tempo do infortúnio. Conserva-te unido a Ele e não te separes, para teres bom êxito no teu momento derradeiro. Aceita tudo o que te acontecer e tem paciência nas vicissitudes da tua humilhação, porque no fogo se prova o ouro, e os eleitos de Deus no cadinho da humilhação. Nas doenças e na pobreza, confia n’Ele. Confia em Deus e Ele te salvará, endireita os teus caminhos e espera n’Ele. Vós que temeis o Senhor, esperai na sua misericórdia, e não vos afasteis, para não cairdes» (2, 2-7).

2. Página a página, descobrimos um precioso compêndio de sugestões sobre o modo de agir à luz duma relação íntima com Deus, criador e amante da criação, justo e providente para com todos os seus filhos. Mas, a constante referência a Deus não impede de olhar para o homem concreto; pelo contrário, as duas realidades estão intimamente conexas.

Demonstra-o claramente o texto donde se tirou o título desta Mensagem (cf. 7, 29-36). São inseparáveis a oração a Deus e a solidariedade com os pobres e os enfermos. Para celebrar um culto agradável ao Senhor, é preciso reconhecer que toda a pessoa, mesmo a mais indigente e desprezada, traz gravada em si mesma a imagem de Deus. De tal consciência deriva o dom da bênção divina, atraída pela generosidade praticada para com os pobres. Por isso, o tempo que se deve dedicar à oração não pode tornar-se jamais um álibi para descuidar o próximo em dificuldade. É verdade o contrário: a bênção do Senhor desce sobre nós e a oração alcança o seu objetivo, quando eles são acompanhadas pelo serviço dos pobres.

3. Como permanece atual, também para nós, este ensinamento! Na realidade, a Palavra de Deus ultrapassa o espaço, o tempo, as religiões e as culturas. A generosidade que apoia o vulnerável, consola o aflito, mitiga os sofrimentos, devolve dignidade a quem dela está privado, é condição para uma vida plenamente humana. A opção de prestar atenção aos pobres, às suas muitas e variadas carências, não pode ser condicionada pelo tempo disponível ou por interesses privados, nem por projetos pastorais ou sociais desencarnados. Não se pode sufocar a força da graça de Deus pela tendência narcisista de se colocar sempre a si mesmo no primeiro lugar.

Manter o olhar voltado para o pobre é difícil, mas tão necessário para imprimir a justa direção à nossa vida pessoal e social. Não se trata de gastar muitas palavras, mas antes de comprometer concretamente a vida, impelidos pela caridade divina. Todos os anos, com o Dia Mundial dos Pobres, volto a esta realidade fundamental para a vida da Igreja, porque os pobres estão e sempre estarão connosco (cf. Jo 12, 8) para nos ajudar a acolher a companhia de Cristo na existência do dia a dia.

4. O encontro com uma pessoa em condições de pobreza não cessa de nos provocar e questionar. Como podemos contribuir para eliminar ou pelo menos aliviar a sua marginalização e o seu sofrimento? Como podemos ajudá-la na sua pobreza espiritual? A comunidade cristã é chamada a coenvolver-se nesta experiência de partilha, ciente de que não é lícito delegá-la a outros. E, para servir de apoio aos pobres, é fundamental viver pessoalmente a pobreza evangélica. Não podemos sentir-nos tranquilos, quando um membro da família humana é relegado para a retaguarda, reduzindo-se a uma sombra. O clamor silencioso de tantos pobres deve encontrar o povo de Deus na vanguarda, sempre e em toda parte, para lhes dar voz, defendê-los e solidarizar-se com eles face a tanta hipocrisia e tantas promessas não cumpridas, e para os convidar a participar na vida da comunidade.

É verdade que a Igreja não tem soluções globais a propor, mas oferece, com a graça de Cristo, o seu testemunho e gestos de partilha. Além disso, sente-se obrigada a apresentar os pedidos de quantos não têm o necessário para viver. Lembrar a todos o grande valor do bem comum é, para o povo cristão, um compromisso vital, que se concretiza na tentativa de não esquecer nenhum daqueles cuja humanidade é violada nas suas necessidades fundamentais.

5. Estender a mão leva a descobrir, antes de tudo a quem o faz, que dentro de nós existe a capacidade de realizar gestos que dão sentido à vida. Quantas mãos estendidas se veem todos os dias! Infelizmente, sucede sempre com maior frequência que a pressa faz cair num turbilhão de indiferença, a tal ponto que se deixa de reconhecer todo o bem que se realiza diariamente no silêncio e com grande generosidade. Assim, só quando acontecem factos que transtornam o curso da nossa vida é que os olhos se tornam capazes de vislumbrar a bondade dos santos «ao pé da porta», «daqueles que vivem perto de nós e são um reflexo da presença de Deus» (Francisco, Exort. ap. Gaudete et exsultate, 7), mas dos quais ninguém fala. As más notícias abundam de tal modo nas páginas dos jornais, nos sites da internet e nos visores da televisão, que faz pensar que o mal reine soberano. Mas não é assim. Certamente não faltam a malvadez e a violência, a prepotência e a corrupção, mas a vida está tecida por atos de respeito e generosidade que não só compensam o mal, mas impelem a ultrapassá-lo permanecendo cheios de esperança.

6. Estender a mão é um sinal: um sinal que apela imediatamente à proximidade, à solidariedade, ao amor. Nestes meses, em que o mundo inteiro foi dominado por um vírus que trouxe dor e morte, desconforto e perplexidade, pudemos ver tantas mãos estendidas! A mão estendida do médico que se preocupa de cada paciente, procurando encontrar o remédio certo. A mão estendida da enfermeira e do enfermeiro que permanece, muito para além dos seus horários de trabalho, a cuidar dos doentes. A mão estendida de quem trabalha na administração e providencia os meios para salvar o maior número possível de vidas. A mão estendida do farmacêutico exposto a inúmeros pedidos num arriscado contacto com as pessoas. A mão estendida do sacerdote que, com o coração partido, continua a abençoar. A mão estendida do voluntário que socorre quem mora na rua e a quantos, embora possuindo um teto, não têm nada para comer. A mão estendida de homens e mulheres que trabalham para prestar serviços essenciais e segurança. E poderíamos enumerar ainda outras mãos estendidas, até compor uma ladainha de obras de bem. Todas estas mãos desafiaram o contágio e o medo, a fim de dar apoio e consolação.

7. Esta pandemia chegou de improviso e apanhou-nos impreparados, deixando uma grande sensação de desorientamento e impotência. Mas, a mão estendida ao pobre não chegou de improviso. Antes, dá testemunho de como nos preparamos para reconhecer o pobre a fim de o apoiar no tempo da necessidade. Não nos improvisamos instrumentos de misericórdia. Requer-se um treino diário, que parte da consciência de quanto nós próprios, em primeiro lugar, precisamos duma mão estendida em nosso favor.

Este período que estamos a viver colocou em crise muitas certezas. Sentimo-nos mais pobres e mais vulneráveis, porque experimentamos a sensação da limitação e a restrição da liberdade. A perda do emprego, dos afetos mais queridos, como a falta das relações interpessoais habituais, abriu subitamente horizontes que já não estávamos acostumados a observar. As nossas riquezas espirituais e materiais foram postas em questão e descobrimo-nos amedrontados. Fechados no silêncio das nossas casas, descobrimos como é importante a simplicidade e o manter os olhos fixos no essencial. Amadureceu em nós a exigência duma nova fraternidade, capaz de ajuda recíproca e estima mútua. Este é um tempo favorável para «voltar a sentir que precisamos uns dos outros, que temos uma responsabilidade para com os outros e o mundo (…). Vivemos já muito tempo na degradação moral, baldando-nos à ética, à bondade, à fé, à honestidade (…). Uma tal destruição de todo o fundamento da vida social acaba por colocar-nos uns contra os outros na defesa dos próprios interesses, provoca o despertar de novas formas de violência e crueldade e impede o desenvolvimento duma verdadeira cultura do cuidado do meio ambiente» (Francisco, Carta enc. Laudato si’, 229). Enfim, as graves crises económicas, financeiras e políticas não cessarão enquanto permitirmos que permaneça em letargo a responsabilidade que cada um deve sentir para com o próximo e toda a pessoa.

8. «Estende a mão ao pobre» é, pois, um convite à responsabilidade, sob forma de empenho direto, de quem se sente parte do mesmo destino. É um encorajamento a assumir os pesos dos mais vulneráveis, como recorda São Paulo: «Pelo amor, fazei-vos servos uns dos outros. É que toda a Lei se cumpre plenamente nesta única palavra: ama o teu próximo como a ti mesmo. (…) Carregai as cargas uns dos outros» (Gal 5, 13-14; 6, 2). O Apóstolo ensina que a liberdade que nos foi dada com a morte e ressurreição de Jesus Cristo é, para cada um de nós, uma responsabilidade para colocar-se ao serviço dos outros, sobretudo dos mais frágeis. Não se trata duma exortação facultativa, mas duma condição da autenticidade da fé que professamos.

E aqui volta o livro de Ben-Sirá em nossa ajuda: sugere ações concretas para apoiar os mais vulneráveis e usa também algumas imagens sugestivas. Primeiro, toma em consideração a debilidade de quantos estão tristes: «Não fujas dos que choram» (7, 34). O período da pandemia constrangeu-nos a um isolamento forçado, impedindo-nos até de poder consolar e estar junto de amigos e conhecidos atribulados com a perda dos seus entes queridos. E, depois, afirma o autor sagrado: «Não sejas preguiçoso em visitar um doente» (7, 35). Experimentamos a impossibilidade de estar junto de quem sofre e, ao mesmo tempo, tomamos consciência da fragilidade da nossa existência. Enfim, a Palavra de Deus nunca nos deixa tranquilos e continua a estimular-nos para o bem.

9. «Estende a mão ao pobre» faz ressaltar, por contraste, a atitude de quantos conservam as mãos nos bolsos e não se deixam comover pela pobreza, da qual frequentemente são cúmplices também eles. A indiferença e o cinismo são o seu alimento diário. Que diferença relativamente às mãos generosas que acima descrevemos! Com efeito, existem mãos estendidas para premer rapidamente o teclado dum computador e deslocar somas de dinheiro duma parte do mundo para outra, decretando a riqueza de restritas oligarquias e a miséria de multidões ou a falência de nações inteiras. Há mãos estendidas a acumular dinheiro com a venda de armas que outras mãos, incluindo mãos de crianças, utilizarão para semear morte e pobreza. Existem mãos estendidas que, na sombra, trocam doses de morte para se enriquecer e viver no luxo e num efémero desregramento. Existem mãos estendidas que às escondidas trocam favores ilegais para um lucro fácil e corruto. E há também mãos estendidas que, numa hipócrita respeitabilidade, estabelecem leis que eles mesmos não observam.

Neste cenário, «os excluídos continuam a esperar. Para se poder apoiar um estilo de vida que exclui os outros ou mesmo entusiasmar-se com este ideal egoísta, desenvolveu-se uma globalização da indiferença. Quase sem nos dar conta, tornamo-nos incapazes de nos compadecer ao ouvir os clamores alheios, já não choramos à vista do drama dos outros, nem nos interessamos por cuidar deles, como se tudo fosse uma responsabilidade de outrem, que não nos incumbe» (Francisco, Exort. ap Evangelii gaudium, 54). Não poderemos ser felizes enquanto estas mãos que semeiam morte não forem transformadas em instrumentos de justiça e paz para o mundo inteiro.

10. «Em todas as tuas obras, lembra-te do teu fim» (Sir 7, 36): tal é a frase com que Ben-Sirá conclui a sua reflexão. O texto presta-se a uma dupla interpretação. A primeira destaca que precisamos de ter sempre presente o fim da nossa existência. A lembrança do nosso destino comum pode ajudar a conduzir uma vida sob o signo da atenção a quem é mais pobre e não teve as mesmas possibilidades que nós. Mas existe também uma segunda interpretação, que evidencia principalmente a finalidade, o objetivo para o qual tende cada um. É a finalidade da nossa vida que exige um projeto a realizar e um caminho a percorrer sem se cansar. Pois bem! O objetivo de cada ação nossa só pode ser o amor: tal é o objetivo para onde caminhamos, e nada deve distrair-nos dele. Este amor é partilha, dedicação e serviço, mas começa pela descoberta de que primeiro fomos nós amados e despertados para o amor. Esta finalidade aparece no momento em que a criança se cruza com o sorriso da mãe, sentindo-se amada pelo próprio facto de existir. De igual modo um sorriso que partilhamos com o pobre é fonte de amor e permite viver na alegria. Possa então a mão estendida enriquecer-se sempre com o sorriso de quem não faz pesar a sua presença nem a ajuda que presta, mas alegra-se apenas em viver o estilo dos discípulos de Cristo.

Neste caminho de encontro diário com os pobres, acompanha-nos a Mãe de Deus que é, mais do que qualquer outra, a Mãe dos pobres. A Virgem Maria conhece de perto as dificuldades e os sofrimentos de quantos estão marginalizados, porque Ela mesma Se viu a dar à luz o Filho de Deus num estábulo. Devido à ameaça de Herodes, fugiu, juntamente com José, seu esposo, e o Menino Jesus, para outro país e, durante alguns anos, a Sagrada Família conheceu a condição de refugiados. Possa a oração à Mãe dos pobres acomunar estes seus filhos prediletos e quantos os servem em nome de Cristo. E a oração transforme a mão estendida num abraço de partilha e reconhecida fraternidade.

Roma, em São João de Latrão, na Memória litúrgica de Santo António, 13 de junho de 2020.

Francisco

O vento da mudança. Histórias de vida e ministerialidade social

ministerialidad
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Os combonianos e as combonianas nasceram graças ao Plano de São Daniel Comboni de regenerar a África com a própria África. O Plano foi publicado pela primeira vez em 1864, mas foi revisto e actualizado pelo próprio Comboni nada menos que sete vezes: foi uma inspiração do Alto, fruto do amor compassivo do Bom Pastor para com a África que Comboni chamava «a pérola negra»; mas também uma participação a partir de baixo, com expressões diversas de missão, estratégias, envolvimento de grupos eclesiais, filantrópicos, cientistas e geógrafos, pela procura de pessoal e fundos para a sua realização.

Os biógrafos de Comboni reconhecem-lhe algumas características fundamentais, entre as quais a sua clarividência prática e dinâmica e a sua inquebrantável confiança na regeneração da África, não obstante os obstáculos, as cruzes, as incompreensões, as críticas e as calúnias; prova disso é que dois africanos, Daniel Sorur Pharim Den (1860-1900) e Fortunata Quascè (1845-1899), ambos sudaneses e resgatados à escravatura, na visão inclusiva da obra comboniana, abraçaram de imediato o Plano e, através do seu ministério, revelaram a sua eficácia.

O primeiro descreveu a real condição dos Negros e sublinhou que a regeneração dos africanos só podia realizar-se com duas condições: quebrar o jugo da escravatura e oferecer aos africanos as mesmas oportunidades de formação que eram dadas a todos os outros povos. A segunda dedicou toda a sua vida à formação e à preparação das meninas africanas, para que por sua vez, libertadas da escravatura, criassem no coração da África negra processos de regeneração.

Desde há mais de 150 anos, os herdeiros de Comboni, iluminados do Alto, com a mesma determinação e com a mesma confiança; movidos pelo amor compassivo pelos mais pobres e abandonados, deram forma ao sonho de regenerar a África através do ministério social, adaptando o plano aos tempos e aos lugares, no sopro do Espírito que «renova a face da terra» (Sl 103, 30). O património importante a conhecer e a valorizar, sobretudo hoje, para enfrentar um sistema neoliberal de predadores ávidos, que concentra a riqueza nas mãos de poucos e promove a cultura do descarte, excluindo milhões de pessoas das condições de vida plena.

Eis porque para 2020, o ano que os missionários combonianos dedicaram à ministerialidade, as direcções gerais da família comboniana, consagrados, seculares e leigos, pediram a uma comissão, nomeada ad hoc, para publicar um livro no qual sejam narradas algumas histórias de vida vivida na ministerialidade social. Ao mesmo tempo, alargar a pesquisa através de um mapeamento das nossas presenças e empenhos, que envolve as comunidades da família comboniana, espalhadas nos quatro continentes. Propúnhamo-nos:

  • Elaborar critérios e princípios comuns nas experiências existentes de colaboração enquadrando-as numa perspectiva institucional.
  • Avaliar de que modo as várias ministerialidades têm um impacto de transformação social sobre a realidade e como a nossa presença ministerial responde a uma verdadeira exigência dos sinais dos tempos.

Este trabalho foi sem dúvida ambicioso, mas ao mesmo tempo limitado, no sentido que é sempre difícil encerrar num escrito a riqueza do vivido. Até porque há o embaraço da escolha entre as experiências de 3500 missionários consagrados, consagradas, seculares, leigos e leigas que trabalham segundo o carisma comboniano, em África, nas Américas, na Ásia e na Europa.

O livro intitulado «Nós somos missão. Testemunhos de ministerialidade social na família comboniana», foi publicado em Junho de 2020, em quatro línguas (italiano, inglês, espanhol e francês). O trabalho foi o fruto da colaboração de 61 missionárias e missionários, convidados a relatar a sua vivência ministerial social; além disso, dois especialistas externos fizeram uma leitura sapiencial do material, indicando os pontos fortes do empenho ministerial e as dificuldades a resolver para uma maior eficácia na mudança do sistema.

As narrações e as partilhas feitas neste texto, ajudam a compreender que, embora na multiplicidade das situações, das abordagens e das iniciativas, a dimensão social é o eixo transversal de todo o ministério; no sentido que todo o serviço, entendido como dom de Deus, pela sua própria força intrínseca, proclama a libertação dos oprimidos, «o ano de graça» (Lc 4, 18-19) e revela às gentes «os novos céus e a nova terra» (Ap 21, 1) no projecto original e providencial de Deus.

A narração da práxis da ministerialidade social, por esta razão, enriquece o paradigma de referência da missão, sempre mais encarnada na complexidade do mundo de hoje e atenta a ler os sinais dos tempos e dos lugares, para poder reanunciar a todos os povos a fé em Jesus Cristo, com linguagem e estilos de presença adequados.

O processo iniciado será longo e gradual no tempo, mas poderá valer-se de alguns temas e sugestões salientados nestas partilhas e noutras que serão expressas no mapeamento geral da família comboniana. Um momento de encontro, aprofundamento, síntese, discernimento e relançamento está também previsto no Fórum sobre a ministerialidade social comboniana em Roma, no próximo mês de Dezembro de 2020.

Não se parte do zero ou de teorias, mas de acontecimentos vividos e narrados na quotidianidade da missão comboniana, que se podem sintetizar com alguns verbos:

Ver: com «olhos penetrantes e coração aberto» para colher os desafios e as oportunidades para o anúncio do Evangelho.

Tornar-se próximo: na dinâmica de uma Igreja missionária e «em saída», que vive nas margens e toca as feridas dos irmãos e das irmãs, levando em si o cheiro das ovelhas e o estilo de vida dos pobres.

Encontrar: vivendo e promovendo a mística do encontro. Professar a catolicidade e encurtar a distância entre credos e culturas, através do diálogo e do ecumenismo, para uma fraternidade global.

Regenerar: deixar-se desafiar pela realidade e esforçar-se por encontrar os cinco pães e os dois peixes dos pequenos, a esmola da viúva, a água da purificação dos povos.

Transformar: não há mais tempo para alterações; é tempo de mudança! É tempo de enfrentar as causas que geram as desigualdades entre as pessoas e entre os povos e a cultura do descarte.

Celebrar: Tudo aquilo que dá consistência ao ministério social e configura os discípulos e as discípulas ao mistério Pascal de Cristo, sustento da fé na quotidianidade da missão.

Repartir: No olhar do Espírito não há mais espaço para a autoglorificação e a vanglória; tudo é provado na chama do fogo que purifica e impele a ousar e repartir por caminhos e estradas inéditos, para que sejam sempre mais as vias de Deus.

Os âmbitos da ministerialidade social

O coração da ministerialidade social é o pôr-se à escuta do grito dos pobres, aliar-se com eles, para que as suas expectativas se realizem e os tornem capazes de transformação; na lógica evangélica do Senhor: «que, sendo rico, se fez pobre por vós, para vos enriquecer com a sua pobreza» (2 Cor 8, 9).

Como Família Comboniana, trabalhamos desde sempre na dimensão social: formação das consciências e preparação dos líderes profissionais; meios de comunicação; cuidado e atenção às pessoas, saúde e educação; periferias existenciais e geográficas (como por exemplo o cuidado dos meninos da rua, situações de guerra e de conflito, minorias étnicas; o tráfico de menores e de mulheres; direitos humanos; prisões, pastores nómadas…); mobilidade humana e pastoral dos migrantes; salvaguarda da criação; liturgia e catequese.

Perspectivas

O processo iniciado ao acentuar a dimensão social da ministerialidade não pode nem deve ser considerado como uma acção de circunstância e limitado no tempo. É um longo caminho, segundo a tradição viva da Igreja. Deve ser sustentado, alimentado e revisto no ritmo acelerado da mudança epocal, a fim de dar eficácia e criatividade à presença missionária e carismática da Família Comboniana no mundo de hoje.

A dimensão social na ministerialidade convida, por isso, a rever a ideia de missão. Um convite à Família Comboniana a reflectir sobre aquilo que quer ser e quer realizar para o bem da humanidade na construção do Reino de Deus. O fio condutor é sempre a missão, com estas características particulares:

  • a transformação do sistema que gera a cultura do descarte;
  • a promoção do Evangelho do cuidado das pessoas, através da proximidade e a compaixão samaritana;
  • a sinodalidade, no envolvimento e na comparticipação efectiva de todos os ministérios;
  • a conversão ecológica, conscientes de que salvaguardando a casa comum criaremos as condições de vida digna para todos, especialmente para os excluídos.

Eis porque o título do livro «Nós somos missão», se torna um apelo à missão, vivida como comunidade de regenerados e comunhão comboniana entre irmãs, irmãos e leigos, sempre mais articulados e interligados com outros grupos e associações eclesiais e laicais, como parte integrante do povo de Deus.

Este processo de mudança amplifica o sonho comboniano de regenerar a África com a África na perspectiva do grande sonho do Papa Francisco, expresso na Exortação Apostólica pós-sinodal «Querida Amazónia»: o sonho da construção de uma nova sociedade com a inclusão dos «descartados» e um novo pacto social para o bem comum. O sonho cultural de uma humanidade plural; o sonho ecológico onde tudo está interligado e o empenho em salvar a terra garante o futuro para a humanidade inteira. Por fim, o sonho eclesial, bem simbolizado pela imagem de «hospital de campo», mergulhada na vida e na realidade dos pobres e marginalizados, que toca as feridas dos irmãos e irmãs e derrama o óleo da paz e da reconciliação.
Fernando Zolli e Daniele Moschetti