Leigos Missionários Combonianos

190º Aniversário do nascimento de São Daniel Comboni

Daniel Comboni

«Eu vim lançar fogo sobre a terra; e como gostaria que ele já se tivesse ateado!»

Manter Vivo o Fogo

Daniel Comboni

Introdução. Com a celebração do 190º aniversário do nascimento de São Daniel Comboni (Limone Sul Garda, 15 de Março de 1831) e o 140º aniversário da sua morte (Cartum, 10 de Outubro de 1881), somos convidados a celebrar o nosso memorial carismático e a invocar a força da presença do Espírito que iluminou a sua vida, desde o nascer ao morrer. A sua beatificação (17 de Março de 1996), da qual ocorre o 25º aniversário este ano, foi um dom carismático para toda a família comboniana. Naquele momento[1], os conselhos gerais publicaram uma mensagem e uma carta conjunta para encorajar os membros da nossa família missionária à alegria e ao olhar espiritual para com o nosso pai, em busca de inspiração e fecundidade para o serviço missionário. Por fim, com a canonização, a Igreja inscreveu-o no álbum dos Santos, reconhecendo a validade e actualidade do carisma missionário e propondo São Daniel Comboni como modelo de vida cristã e de missão, exemplo e paradigma de um empenho missionário universal, que une continentes e povos diversos na paixão por Deus e pela Humanidade. Também então, os nossos conselhos gerais nos ofereceram uma mensagem[2] e uma carta[3] convidando-nos a olhar para São Daniel como testemunha e mestre da santidade a que somos chamados e da missão que vivemos. A presente carta insere-se neste movimento de memória e actualização do dom carismático confiado a São Daniel e, nele, a todos nós: dom de Deus reavivado em cada geração comboniana.

Considerar as próprias raízes. Fazer memória do nascimento de São Daniel Comboni convida-nos, antes de mais, a considerar as suas raízes familiares, eclesiais e sociais, que tanto o influenciaram e às quais voltava frequentemente[4]. O seu nascimento dá-se entre dificuldades e constrangimentos. Os seus pais eram migrantes, vindos para Limone em busca de trabalho. O pai, Luigi Comboni, com 15 anos de idade, em Dezembro de 1818 viera para Limone proveniente de Bogliaco. A mãe, Domenica Pace, nascera em Limone (31 de Março de 1801) mas a família provinha de Magasa, nas montanhas. Luigi e Domenica casaram-se a 21 de Julho de 1826, na igreja de San Benedetto e tiveram, segundo o registo dos baptismos, seis filhos; a estes seria de juntar dois gémeos mortos, que não foi possível baptizar[5].

«Daniel Comboni cresceu na modesta casa do Tesol com os pais, vivendo as alegrias e os sofrimentos da família. Dos seus irmãos sobreviveram só Vigilio (1827-1848) e Marianna (1832-1836)»[6]. Ele teve grande afecto e estima pela sua mãe e o seu pai. A mãe morreu a 14 de Julho de 1858, durante a sua primeira viagem a África, e foi com o pai Luigi que Daniel manteve uma intensa correspondência, na qual reconhecia a religiosidade dos pais e a influência que tiveram na sua vida e vocação missionária. Nestas cartas comprovam-se os elementos humanos e cristãos que constituíram o húmus que fez crescer a vocação e a missão de São Daniel (o apelo da beleza do lago e das montanhas, o brio da fé e vida cristã, a devoção à Cruz do Salvador, a contemplação do Seu amor e do Coração transpassado, a paixão por Deus e pelos mais necessitados): «Ânimo, pois, meu querido pai! Eu tenho o coração sempre voltado para vós, falo convosco todos os dias, sou parte dos vossos afãs e saboreio de antemão as delícias que Deus vos reserva no Céu. Coragem, portanto. Seja Deus o centro de comunicação entre vós e mim. Ele guie os nossos empreendimentos, os nossos assuntos, os nossos destinos e alegremo-nos, que temos um bom amo, um fiel amigo, um pai amoroso»[7]. A celebração do 190º aniversário do seu nascimento oferece-nos uma nova oportunidade de aproximar-nos a ele e às suas raízes familiares e eclesiais, reforçando a consciência das nossas próprias raízes, como fundo espiritual que assegura estabilidade às nossas personalidades e fecundidade espiritual à nossa vida missionária. E esta celebração dá-nos a oportunidade de aprofundar, como família comboniana, o papel de Limone e de continuar a colaboração, empreendida na terra natal de São Daniel Comboni.

Fidelidade no meio das adversidades. A memória do 140º aniversário da morte de Daniel Comboni convida-nos a olhar a sua vida desde o momento supremo do dom de si pela regeneração da nigrícia. Nas cartas escritas nos últimos meses da sua vida, ele surge como um missionário cercado pelas dificuldades, mas radicado na fé: carestia, pestilência e fome, falta de água, escassez de meios materiais para sustentar as iniciativas missionárias, doença e morte dos seus missionários… Nas suas palavras, são «tempos de desolação» em que «são demasiados os sofrimentos que há que aliviar»[8].

Perante estas dificuldades, Comboni permanece ancorado na fé em Deus e na visão missionária que inspirou e susteve a sua vida. «Eu sou feliz na cruz, que levada de boa vontade por amor de Deus gera o triunfo e a vida eterna»: estas palavras[9] encerram, num momento crucial, o estado de ânimo de toda a sua vida. Este regresso aos pés da Cruz, à contemplação do Coração transpassado, onde tudo começou, enche de luz e de coragem o tempo do regresso ao Pai e está na origem da confiança e da «coragem para o presente e, sobretudo, para o futuro»[10] que Comboni impregna nos seus missionários, no momento do Adeus: «Eu morro, mas a obra não morrerá!»[11].

As duas datas do memorial que fazemos este ano delineiam um percurso de vida, no qual a força do Espírito toma forma na vida de São Daniel e torna perceptível e vivo um calce «do amor ilimitado» de Deus[12]; ele deixa-se «formar» pelo Amor que contempla, tendo o olhar fixo em Jesus crucificado. São Daniel deixa-nos um testemunho que é gerador de vida para o nosso hoje.

Entre nascer e morrer. Celebramos estas datas da vida de São Daniel Comboni depois de um ano, o 2020, marcado pela pandemia do coronavírus. E o novo, 2021, iniciou em todo o mundo ainda sob o signo da incerteza e da crise sanitária e económica. Na família comboniana sofremos pelas consequências desta situação: perdemos missionários e missionárias que, após anos de missão, nos enriqueciam com o seu testemunho e que esperavam uma velhice serena[13]; o ritmo das nossas actividades sofreu uma interrupção e os nossos planos e projectos ficaram suspensos; as limitações às deslocações puseram-nos à prova, desafiando a criatividade para permanecer próximo dos pobres e dos últimos, de quem sofre mais as consequências da pandemia; sentimo-nos incapazes de divisar um caminho e um tempo de saída e partilhamos o sentimento de desorientação e de perda que está a arrastar tantos dos nossos irmãos e irmãs.

Olhando para São Daniel Comboni, no arco da sua vida e vocação missionária, entre o nascimento e a morte, vemos como, no momento da crise e da incerteza, soube reconhecer e acatar os movimentos do Espírito, rever os seus planos e renovar o seu empenho missionário, abraçar a Cruz e as dificuldades, ver nelas o sinal de uma presença amorosa e de um agir misterioso de Deus, de uma hora divina com a sua promessa de vida renovada. Em todas estas situações, ele deixa-se atrair pelo Amor de Deus pela África, e não se assusta se é parte de um pequíssimo grupo; persevera, sonha, assume os riscos e é capaz de oferecer a sua vida, sem medir os esforços. Dele aprendemos as atitudes de que temos necessidade para viver este nosso tempo, tão incerto, como uma hora de Deus: a paciência e a fidelidade à vocação missionária; a capacidade de envolver-nos com criatividade, colocando sempre as pessoas e Deus no centro; o sentido da comunhão (ser cenáculo) que mantém unidos e reforça a nossa identidade carismática e a nossa vocação missionária na Igreja de hoje.

Daniel Comboni impele-nos a não deixar que o peso do covid e as reincidências negativas do distanciamento físico, fecham-nos em nós mesmos; a superar competição e conflito, recuperando o espírito de colaboração entre leigas, leigos, irmãs, irmãos, sacerdotes; a fazer crescer o sentido de comunhão e a jovialidade do viver juntos que Comboni recomendava aos seus; a manter viva a esperança mesmo na escuridão, redescobrindo a força do cuidar e da resiliência; a aceitar as mudanças em curso e ver oportunidades onde outros vêem fracasso; a assumir o nascer e o morrer como portas de passagem, desafios à criatividade e ocasião para apoiar-nos mutuamente; a considerar as perdas (de vidas, postos de trabalho, saúde e segurança sanitária e económica…) como ocasião de conversão e de apoio entre nós, indivíduos, famílias e comunidades. Na pandemia mantivemo-nos em comunhão, trocamos informações e demos vida a processos como o Fórum da Ministerialidade Social, cujos encontros se fizeram via zoom; a presente situação desafia-nos a procurar caminhos novos para manter-nos unidos como família comboniana e enfrentar juntos momentos difíceis e mudanças e continuar os processos de colaboração[14].

A luz do testemunho de São Daniel Comboni ilumina o nosso discernimento nos tempos que estamos a viver e no que somos chamados a fazer no futuro imediato, que não será um simples regresso ao passado que conhecemos. Oferece-nos os critérios para assumir os valores que temos a peito, a amizade e o afecto de familiares e amigos; para compreender o destino comum da humanidade, ameaçada pela pandemia e pela catástrofe ecológica; para empenhar-nos na transformação social (da mudança climática ao cuidado pela casa comum e a saúde para todas as pessoas…) dando o nosso contributo com criatividade, renunciando ao supérfluo e favorecendo a solidariedade.

Estas atitudes têm as suas raízes na fé, no «forte sentimento de Deus» e no «interesse vivo pela Sua Glória e o bem das pessoas», sobretudo dos empobrecidos e marginalizados, que são o antídoto que São Daniel Comboni sugere para contrariar o stresse da pandemia e a incerteza dos tempos que vivemos. Ele inspira-nos a encarar o mundo e os acontecimentos que vivemos com o «puro raio da fé»[15] e adverte-nos que o missionário (a missionária) que não tivesse este olhar «acabaria por se encontrar numa espécie de vazio e de intolerável isolamento»[16]. E indica-nos o caminho para permanecer na fidelidade: «… ter sempre os olhos fixos em Jesus Cristo, amando-o ternamente e procurando compreender cada vez melhor o que quer dizer um Deus morto na cruz…»[17]. Comboni fala de «uma chama de fogo divino» que sai do Coração transpassado e que o missionário/a recebe aos pés da cruz para levar a toda a parte, qual fogo que alimenta o próprio empenho pela regeneração das pessoas e a transformação das sociedades em que vive[18].

Manter vivo este Fogo. A memória do nascimento e da morte de São Daniel Comboni recorda-nos que o maior desafio que vivemos neste momento é precisamente este, de manter vivo o fogo, acesa esta chama divina nos nossos corações e «sentir a beleza da paternidade espiritual de São Daniel, que tinha o coração ardente e (…) soube acender profeticamente o fogo do Evangelho atravessando fronteiras (…), incompreensões, visões limitantes, concretizando uma visão missionária inovadora». A fidelidade a Daniel Comboni joga-se no «permanecer no caminho por ele inaugurado» e «acreditar na força do fogo, do Espírito (…) que desce sobre nós para nos tornar corajosos frequentadores do futuro»[19].

Conselhos Gerais das SMC, MSC e dos MCCJ e o Comité Internacional dos LMC


[1] Carta de 23 de Fevereiro de 1996, para a Jornada de Reconciliação. A mensagem «Guardando alla Roccia dalla quale siamo stati tagliati» é de 6 de Abril de 1995.

[2] «Dono da Accogliere e Approfondire» de 15 de Março de 2003.

[3] «Daniele Comboni, Testimone di Santità e Maestro di Missione» de 1 de Setembro de 2003.

[4] Quer com as visitas à casa natal em Limone, quer, sobretudo, com as cartas aos pais, ao pai uma vez falecida a mãe, aos primos, aos párocos e aos cidadãos de Limone. O epistolário de Daniel Comboni com o pai reporta-nos 31 cartas. A primeira é escrita do Cairo a 19 de Outubro de 1857, a última a 6 de Setembro de 1881, um mês antes da morte.

[5] Positio, Roma 1988, Vol. I, p. 14.

[6] Mario Trebeschi e Domenico Fava, San Daniele Comboni e Limone, Limone sul Garda 2011, p. 39.

[7] Daniele Comboni, Os Escritos 188.

[8] Daniele Comboni, Os Escritos 6631.

[9] Carta a Sembianti, Os Escritos 7246.

[10] In Annali del Buon Pastore 27 de Janeiro de 1882.

[11] Giovanni Dichtl, carta ao Cardeal Simeoni de 29.9.1889.

[12] Daniele Comboni, Homilia de Cartum, Os Escritos 3158.

[13] Na primeira vaga da pandemia morreram 13 Irmãs Missionárias Combonianas, em Bergamo. Na segunda, entre 8 de Novembro de 2020 e 10 de Janeiro de 2021, morreram 20 Missionários Combonianos em Castel d’Azzano; e depois outros em Milão, em Ellwangen (Alemanha), em Guadalajara (México) e no Uganda; num total de 35. Globalmente, no final de Janeiro de 2021, são 48 os missionários e missionárias combonianos vítimas do covid-19.

[14] Os membros da comissão da família comboniana, durante a preparação do Fórum da Ministerialidade Social, reflectiram juntos sobre este tempo como uma grande oportunidade para novas modalidades de encontro, na expectativa de momentos melhores para encontrar-se pessoalmente. Para manter vivo o processo, foram programados dois webinar. No primeiro, em Dezembro, inscreveram-se 279 pessoas, representantes de toda a família comboniana espalhada pelo mundo.

[15] Daniele Comboni, Homilia em Cartum, Os Escritos 2745.

[16] Daniele Comboni, Regras de 1871, Capítulo X.

[17] Daniele Comboni, Regras de 1871, Capítulo X.

[18] Daniele Comboni, Piano per la Rigenerazione dell’Africa, IV Edição, Verona 1871, Escritos 2742. «… levado pelo ímpeto daquela caridade que se acendeu com divina chama aos pés do Gólgota e, saída do lado do Crucificado, para abraçar toda a família humana…».

[19] Cardeal José Tolentino de Mendonça, Homilia na memória de São Daniele Comboni, Roma 10 de Outubro de 2020.

Luzes e Escuridão

Etiopia

Partilhar o amor de Deus com os demais, receber e dar, determinaram a nossa vocação missionária (Irmã Vicenta Llorca, Irmã Missionária Comboniana há mais de 40 anos na Etiópia e Pedro Nascimento, Leigo Missionário Comboniano, há dois anos na Etiópia). Tal como fez com Abraão, também a nós, através da oração e discernimento pessoal, Deus disse: “Deixa a tua terra e vai para a terra que eu te indicar” (Gen 12,1). O nosso destino foi a Etiópia, país cheio de sol e de hospitalidade. A Etiópia é um país lindíssimo, com uma grande riqueza histórica e cultural, cheio de tradições e com imensos povos, com grande diversidade linguística.

Etiopia

Benishangul-Gumuz faz parte de uma das regiões da Etiópia e uma das suas tribos aqui presente é a dos Gumuz, gente de carácter forte, disposta a lutar para defender-se em muitos sentidos. O nosso trabalho missionário é especialmente desenvolvido entre os Gumuz.

O nosso primeiro impacto foi muito bom, pois sempre quisemos partilhar a nossa vida com gente simples, como esta. A comunidade das Irmãs Combonianas, situada em Mandura, oferece serviços como a educação, a saúde e a pastoral catequética. A comunidade dos Leigos Combonianos (David Aguilera e Pedro Nascimento) vive com os Missionários Combonianos, em Guilguel Beles, a 10 quilómetros de distância de Mandura e procuram auxiliar ambas as comunidades nas áreas da educação e pastoral catequética, bem como no acompanhamento de alguns doentes.

Etiopia

Nós, Ir. Vicenta e Pedro, trabalhamos na pastoral e no serviço social, pois uma pessoa completa-se desenvolvendo alma e corpo. Uma das actividades que realizamos juntos é o acompanhamento da catequese das mulheres no seu desenvolvimento espiritual, humano e material. Sabemos que a mulher tem um papel importante na transformação da sociedade e aqui elas precisam de descobri-lo. A mulher Gumuz trabalha imenso e é muitas vezes negligenciada nas oportunidades tais como a educação, onde o aproveitamento escolar não é uma prioridade, especialmente, para as mulheres e raparigas. Estas têm, especialmente, que trabalhar no campo, apanhar lenha para cozinhar, carregar água do fontanário ou do rio, carregar pesados sacos com cereais (fruto do trabalho do campo), cuidar dos filhos, cozinhar… A vida da mulher Gumuz é difícil e cheia de sacrifícios e de trabalho árduo.

Reunimo-nos todas as semanas com um grupo de mulheres e elas elegeram um nome para o grupo: “Construtoras da Paz”, nome devido à situação de guerra que temos vivido por mais de dois anos, na nossa zona. Neste grupo partilhamos a Palavra de Deus, rezamos pela paz e tomamos juntos um café com a colaboração económica de todas, e fazemo-nos próximos nas experiências de dor e sofrimento que vivemos, fortalecemos a amizade, partilhamos sonhos e aspirações para o futuro. Estes encontros dão-nos a possibilidade de nos conhecermos e estar mais perto uns dos outros. É nosso desejo, segundo as nossas possibilidades, desenvolver actividades que possam ajudar as mulheres na parte económica, já que elas têm um papel importante na manutenção da família.

Tudo isto é muito bonito e atractivo, mas a vida humana está composta de tempos felizes e tempos dolorosos, dias de luz e dias de escuridão.

Devido a confrontos étnicos, sobretudo pela posse da terra, a estabilidade social piorou, muitos foram mortos, aldeias foram queimadas, algumas colheitas foram roubadas por oportunistas, muitos inocentes postos na prisão sem saber os motivos, as escolas e postos médicos fechados devido à insegurança, temendo que os estudantes sejam atacados pelos rebeldes e os professores e enfermeiros atacados e sequestrados, já que a maioria deles pertencem a outro grupo étnico. Infelizmente esta tem sido a nossa realidade nos últimos dois anos vivendo-se, ora momentos de paz, ora momentos de conflitos e insegurança. Porém, quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao Senhor (Rom 14,8) e Ele connosco sempre está e nos acompanha.

Etiopia

Na missão das Irmãs, algumas mulheres pediram a protecção por umas semanas, ficando lá a dormir. A situação piorou e decidiram escapar para o bosque onde se podiam esconder. Quando a situação se acalmou, pouco a pouco, as famílias foram regressando às suas cabanas. Como referimos, anteriormente, esta situação tem-se repetido por dois anos e juntos experimentamos a dor, a insegurança mas também a protecção de Deus. As obras de Deus nascem e crescem aos pés da Cruz, dizia São Daniel Comboni.

Nada disto estava contemplado quando cheios de ilusão, chegámos a esta missão, mas decidimos fazer causa comum com este povo, partilhando os momentos bons e os maus, decidimos permanecer aqui e abandonarmo-nos nas mãos de Deus. Viveram-se tempos muitos difíceis e a nossa presença aqui, no meio das dificuldades, pretende ser testemunho da fidelidade a Deus manifestada na fidelidade ao povo com quem partilhamos a vida. Foi Jesus quem nos disse: “Eis que estou convosco todos os dias, até ao fim dos tempos” (Mt. 28,20).

No meio da dor, de ver sofrer a gente que escapa, dos que sofrem quando choram os seus entes queridos seja porque estão mortos ou porque privados de liberdade, tudo isto se converteu em tempo de graça que nos ajuda a fortalecer a fé e a fidelidade a um povo que vive tempos de sofrimento. Fazer minha a dor do outro, demonstra-nos o quanto o outro é importante para nós, o quanto lhes queremos bem. Ensinava São Daniel Comboni, faço causa comum convosco e o dia mais feliz da minha vida será aquele em que der a minha vida por vós.

Neste momento fazem-se negociações de paz entre o governo e os grupos rebeldes, as escolas e postos médicos (alguns) começam a abrir. Em nós, há a esperança de que se possam viver momentos de paz, felicidade e prosperidade.

Rezem por nós e por estes povos da Etiópia, pois a esperança não a podemos perder, rezem para que consigamos arranjar suporte para desenvolver actividades económicas com as mulheres e ajudar as famílias em necessidade, rezem pela paz e pela comunhão fraterna.

Etiopia

Vicenta Llorca, Irmã Missionária Comboniana e Pedro Nascimento, Leigo Missionário Comboniano

Mensagem do Papa Francisco para a quaresma de 2021

Papa Francisco

«Vamos subir a Jerusalém…» (Mt 20, 18).
Quaresma: tempo para renovar fé, esperança e caridade.

Papa Francisco

Queridos irmãos e irmãs!

Jesus, ao anunciar aos discípulos a sua paixão, morte e ressurreição como cumprimento da vontade do Pai, desvenda-lhes o sentido profundo da sua missão e convida-os a associarem-se à mesma pela salvação do mundo.

Ao percorrer o caminho quaresmal que nos conduz às celebrações pascais, recordamos Aquele que «Se rebaixou a Si mesmo, tornando-Se obediente até à morte e morte de cruz» (Flp 2, 8). Neste tempo de conversão, renovamos a nossa fé, obtemos a«água viva» da esperança e recebemos com o coração aberto o amor de Deus que nos transforma em irmãos e irmãs em Cristo. Na noite de Páscoa, renovaremos as promessas do nosso Batismo, para renascer como mulheres e homens novos por obra e graça do Espírito Santo. Entretanto o itinerário da Quaresma, como aliás todo o caminho cristão, já está inteiramente sob a luz da Ressurreição que anima os sentimentos, atitudes e opções de quem deseja seguir a Cristo.

O jejum, a oração e a esmola – tal como são apresentados por Jesus na sua pregação (cf. Mt 6, 1-18) – são as condições para a nossa conversão e sua expressão. O caminho da pobreza e da privação (o jejum), a atenção e os gestos de amor pelo homem ferido (a esmola) e o diálogo filial com o Pai (a oração) permitem-nos encarnar uma fé sincera, uma esperança viva e uma caridade operosa.

1. A fé chama-nos a acolher a Verdade e a tornar-nos suas testemunhas diante de Deus e de todos os nossos irmãos e irmãs

Neste tempo de Quaresma, acolher e viver a Verdade manifestada em Cristo significa, antes de mais, deixar-nos alcançar pela Palavra de Deus, que nos é transmitida de geração em geração pela Igreja. Esta Verdade não é uma construção do intelecto, reservada a poucas mentes seletas, superiores ou ilustres, mas é uma mensagem que recebemos e podemos compreender graças à inteligência do coração, aberto à grandeza de Deus, que nos ama ainda antes de nós próprios tomarmos consciência disso. Esta Verdade é o próprio Cristo, que, assumindo completamente a nossa humanidade, Se fez Caminho – exigente, mas aberto a todos – que conduz à plenitude da Vida.

O jejum, vivido como experiência de privação, leva as pessoas que o praticam com simplicidade de coração a redescobrir o dom de Deus e a compreender a nossa realidade de criaturas que, feitas à sua imagem e semelhança, n’Ele encontram plena realização. Ao fazer experiência duma pobreza assumida, quem jejua faz-se pobre com os pobres e «acumula» a riqueza do amor recebido e partilhado. O jejum, assim entendido e praticado, ajuda a amar a Deus e ao próximo, pois, como ensina São Tomás de Aquino, o amor é um movimento que centra a minha atenção no outro, considerando-o como um só comigo mesmo [cf. Enc. Fratelli tutti (= FT), 93].

A Quaresma é um tempo para acreditar, ou seja, para receber a Deus na nossa vida permitindo-Lhe «fazer morada» em nós (cf. Jo 14, 23). Jejuar significa libertar a nossa existência de tudo o que a atravanca, inclusive da saturação de informações – verdadeiras ou falsas – e produtos de consumo, a fim de abrirmos as portas do nosso coração Àquele que vem a nós pobre de tudo, mas «cheio de graça e de verdade» (Jo 1, 14): o Filho de Deus Salvador.

2. A esperança como «água viva», que nos permite continuar o nosso caminho

A samaritana, a quem Jesus pedira de beber junto do poço, não entende quando Ele lhe diz que poderia oferecer-lhe uma «água viva» (cf. Jo 4, 10-12); e, naturalmente, a primeira coisa que lhe vem ao pensamento é a água material, ao passo que Jesus pensava no Espírito Santo, que Ele dará em abundância no Mistério Pascal e que infunde em nós a esperança que não desilude. Já quando preanuncia a sua paixão e morte, Jesus abre à esperança dizendo que «ressuscitará ao terceiro dia» (Mt 20, 19). Jesus fala-nos do futuro aberto de par em par pela misericórdia do Pai. Esperar com Ele e graças a Ele significa acreditar que, a última palavra na história, não a têm os nossos erros, as nossas violências e injustiças, nem o pecado que crucifica o Amor; significa obter do seu Coração aberto o perdão do Pai.

No contexto de preocupação em que vivemos atualmente onde tudo parece frágil e incerto, falar de esperança poderia parecer uma provocação. O tempo da Quaresma é feito para ter esperança, para voltar a dirigir o nosso olhar para a paciência de Deus, que continua a cuidar da sua Criação, não obstante nós a maltratarmos com frequência (cf. Enc. Laudato si’, 3233.4344). É ter esperança naquela reconciliação a que nos exorta apaixonadamente São Paulo: «Reconciliai-vos com Deus» (2 Cor 5, 20). Recebendo o perdão no Sacramento que está no centro do nosso processo de conversão, tornamo-nos, por nossa vez, propagadores do perdão: tendo-o recebido nós próprios, podemos oferecê-lo através da capacidade de viver um diálogo solícito e adotando um comportamento que conforta quem está ferido. O perdão de Deus, através também das nossas palavras e gestos, possibilita viver uma Páscoa de fraternidade.

Na Quaresma, estejamos mais atentos a «dizer palavras de incentivo, que reconfortam, consolam, fortalecem, estimulam, em vez de palavras que humilham, angustiam, irritam, desprezam» (FT, 223). Às vezes, para dar esperança, basta ser «uma pessoa amável, que deixa de lado as suas preocupações e urgências para prestar atenção, oferecer um sorriso, dizer uma palavra de estímulo, possibilitar um espaço de escuta no meio de tanta indiferença» (FT, 224).

No recolhimento e oração silenciosa, a esperança é-nos dada como inspiração e luz interior, que ilumina desafios e opções da nossa missão; por isso mesmo, é fundamental recolher-se para rezar (cf. Mt 6, 6) e encontrar, no segredo, o Pai da ternura.

Viver uma Quaresma com esperança significa sentir que, em Jesus Cristo, somos testemunhas do tempo novo em que Deus renova todas as coisas (cf. Ap 21, 1-6), «sempre dispostos a dar a razão da [nossa] esperança a todo aquele que [no-la] peça» (1 Ped 3, 15): a razão é Cristo, que dá a sua vida na cruz e Deus ressuscita ao terceiro dia.

3. A caridade, vivida seguindo as pegadas de Cristo na atenção e compaixão por cada pessoa, é a mais alta expressão da nossa fé e da nossa esperança

A caridade alegra-se ao ver o outro crescer; e de igual modo sofre quando o encontra na angústia: sozinho, doente, sem abrigo, desprezado, necessitado… A caridade é o impulso do coração que nos faz sair de nós mesmos gerando o vínculo da partilha e da comunhão.

«A partir do “amor social”, é possível avançar para uma civilização do amor a que todos nos podemos sentir chamados. Com o seu dinamismo universal, a caridade pode construir um mundo novo, porque não é um sentimento estéril, mas o modo melhor de alcançar vias eficazes de desenvolvimento para todos» (FT, 183).

A caridade é dom,que dá sentido à nossa vida e graças ao qual consideramos quem se encontra na privação como membro da nossa própria família, um amigo, um irmão. O pouco, se partilhado com amor, nunca acaba, mas transforma-se em reserva de vida e felicidade. Aconteceu assim com a farinha e o azeite da viúva de Sarepta, que oferece ao profeta Elias o bocado de pão que tinha (cf. 1 Rs 17, 7-16), e com os pães que Jesus abençoa, parte e dá aos discípulos para que os distribuam à multidão (cf. Mc 6, 30-44). O mesmo sucede com a nossa esmola, seja ela pequena ou grande, oferecida com alegria e simplicidade.

Viver uma Quaresma de caridade significa cuidar de quem se encontra em condições de sofrimento, abandono ou angústia por causa da pandemia de Covid-19. Neste contexto de grande incerteza quanto ao futuro, lembrando-nos da palavra que Deus dera ao seu Servo – «não temas, porque Eu te resgatei» (Is 43, 1) –, ofereçamos, juntamente com a nossa obra de caridade, uma palavra de confiança e façamos sentir ao outro que Deus o ama como um filho.

«Só com um olhar cujo horizonte esteja transformado pela caridade, levando-nos a perceber a dignidade do outro, é que os pobres são reconhecidos e apreciados na sua dignidade imensa, respeitados no seu estilo próprio e cultura e, por conseguinte, verdadeiramente integrados na sociedade» (FT, 187).

Queridos irmãos e irmãs, cada etapa da vida é um tempo para crer, esperar e amar. Que este apelo a viver a Quaresma como percurso de conversão, oração e partilha dos nossos bens, nos ajude a repassar, na nossa memória comunitária e pessoal, a fé que vem de Cristo vivo, a esperança animada pelo sopro do Espírito e o amor cuja fonte inexaurível é o coração misericordioso do Pai.

Que Maria, Mãe do Salvador, fiel aos pés da cruz e no coração da Igreja, nos ampare com a sua solícita presença, e a bênção do Ressuscitado nos acompanhe no caminho rumo à luz pascal.

Roma, em São João de Latrão, na Memória de São Martinho de Tours, 11 de novembro de 2020.

Francisco