Leigos Missionários Combonianos

Encontro dos Conselhos Gerais da Família Comboniana em Roma

Consejos FamiliaComboniana

Os Conselhos Gerais da Família comboniana estiveram reunidos no sábado, 24 de Janeiro de 2015, na casa da Cúria Geral, em Roma.

A parte da manhã foi dedicada à reflexão sobre os desafios que cada um dos ramos da Família está a enfrentar nos diversos contextos onde os missionários e as missionárias se encontram a trabalhar e sobre a necessidade de viver a missão a partir das necessidades reais das pessoas. Também se reflectiu sobre o facto de estarmos a diminuir de número, desde há alguns anos. E, além disso, observou-se o facto de estarem a mudar as proveniências dos nossos membros – cada vez menos europeus e mais americanos e africanos – o que nos deve levar a tomar em consideração essa diversidade e a adoptar um novo estilo de missão. Em seguida, detivemo-nos a reflectir sobre a nossa realidade de Família carismática, sobre o nosso estilo de presença e, sobretudo, sobre o nosso dever ser semente de uma Igreja mais comunitária, na qual os sacerdotes, as religiosas, as seculares e os leigos possam compartilhar as responsabilidades e servir as pessoas em função, cada um, da sua capacidade e especificidade.

Na parte da tarde, tivemos a oportunidade de partilhar sobre os eventos mais significativos do ano de 2014. Para nos informarmos melhor sobre em que ponto se encontra o programa do evento celebrativo do 150º aniversário do Plano – que terá lugar de 13 a 15 de Março de 2015, em Roma –, deu-se um breve tempo à comissão que o está a preparar.

O dia terminou com um momento de oração e com a marcação do próximo encontro no final deste ano.

Mensagem do Papa para o Dia Mundial da Paz 2015

Papa Francisco“A globalização da indiferença, que hoje pesa sobre a vida de tantas irmãs e de tantos irmãos, requer de todos nós que nos façamos artífices duma globalização da solidariedade e da fraternidade que possa devolver-lhes a esperança.” Mensagem do Santo Padre Francisco para a celebração do XLVIII Dia Mundial da Paz: 1º de Janeiro de 2015.

Já não escravos, mas irmãos

No início dum novo ano, que acolhemos como uma graça e um dom de Deus para a humanidade, desejo dirigir, a cada homem e mulher, bem como a todos os povos e nações do mundo, aos chefes de Estado e de Governo e aos responsáveis das várias religiões, os meus ardentes votos de paz, que acompanho com a minha oração a fim de que cessem as guerras, os conflitos e os inúmeros sofrimentos provocados quer pela mão do homem quer por velhas e novas epidemias e pelos efeitos devastadores das calamidades naturais. Rezo de modo particular para que, respondendo à nossa vocação comum de colaborar com Deus e com todas as pessoas de boa vontade para a promoção da concórdia e da paz no mundo, saibamos resistir à tentação de nos comportarmos de forma não digna da nossa humanidade.

Já, na minha mensagem para o 1º de Janeiro passado, fazia notar que «o anseio duma vida plena (…) contém uma aspiração irreprimível de fraternidade, impelindo à comunhão com os outros, em quem não encontramos inimigos ou concorrentes, mas irmãos que devemos acolher e abraçar».[1] Sendo o homem um ser relacional, destinado a realizar-se no contexto de relações interpessoais inspiradas pela justiça e a caridade, é fundamental para o seu desenvolvimento que sejam reconhecidas e respeitadas a sua dignidade, liberdade e autonomia. Infelizmente, o flagelo generalizado da exploração do homem pelo homem fere gravemente a vida de comunhão e a vocação a tecer relações interpessoais marcadas pelo respeito, a justiça e a caridade. Tal fenómeno abominável, que leva a espezinhar os direitos fundamentais do outro e a aniquilar a sua liberdade e dignidade, assume múltiplas formas sobre as quais desejo deter-me, brevemente, para que, à luz da Palavra de Deus, possamos considerar todos os homens, «já não escravos, mas irmãos».

PazÀ escuta do projecto de Deus para a humanidade

O tema, que escolhi para esta mensagem, inspira-se na Carta de São Paulo a Filémon; nela, o Apóstolo pede ao seu colaborador para acolher Onésimo, que antes era escravo do próprio Filémon mas agora tornou-se cristão, merecendo por isso mesmo, segundo Paulo, ser considerado um irmão. Escreve o Apóstolo dos gentios: «Ele foi afastado por breve tempo, a fim de que o recebas para sempre, não já como escravo, mas muito mais do que um escravo, como irmão querido» (Flm 15-16). Tornando-se cristão, Onésimo passou a ser irmão de Filémon. Deste modo, a conversão a Cristo, o início duma vida de discipulado em Cristo constitui um novo nascimento (cf. 2 Cor 5, 17; 1 Ped 1, 3), que regenera a fraternidade como vínculo fundante da vida familiar e alicerce da vida social.

Lemos, no livro do Génesis (cf. 1, 27-28), que Deus criou o ser humano como homem e mulher e abençoou-os para que crescessem e se multiplicassem: a Adão e Eva, fê-los pais, que, no cumprimento da bênção de Deus para ser fecundos e multiplicar-se, geraram a primeira fraternidade: a de Caim e Abel. Saídos do mesmo ventre, Caim e Abel são irmãos e, por isso, têm a mesma origem, natureza e dignidade de seus pais, criados à imagem e semelhança de Deus.

Mas, apesar de os irmãos estarem ligados por nascimento e possuírem a mesma natureza e a mesma dignidade, a fraternidade exprime também a multiplicidade e a diferença que existe entre eles. Por conseguinte, como irmãos e irmãs, todas as pessoas estão, por natureza, relacionadas umas com as outras, cada qual com a própria especificidade e todas partilhando a mesma origem, natureza e dignidade. Em virtude disso, a fraternidade constitui a rede de relações fundamentais para a construção da família humana criada por Deus.

Infelizmente, entre a primeira criação narrada no livro do Génesis e o novo nascimento em Cristo – que torna, os crentes, irmãos e irmãs do «primogénito de muitos irmãos» (Rom 8, 29) –, existe a realidade negativa do pecado, que interrompe tantas vezes a nossa fraternidade de criaturas e deforma continuamente a beleza e nobreza de sermos irmãos e irmãs da mesma família humana. Caim não só não suporta o seu irmão Abel, mas mata-o por inveja, cometendo o primeiro fratricídio. «O assassinato de Abel por Caim atesta, tragicamente, a rejeição radical da vocação a ser irmãos. A sua história (cf. Gen 4, 1-16) põe em evidência o difícil dever, a que todos os homens são chamados, de viver juntos, cuidando uns dos outros».[2]

Também na história da família de Noé e seus filhos (cf. Gen 9, 18-27), é a falta de piedade de Cam para com seu pai, Noé, que impele este a amaldiçoar o filho irreverente e a abençoar os outros que o tinham honrado, dando assim lugar a uma desigualdade entre irmãos nascidos do mesmo ventre.

Na narração das origens da família humana, o pecado de afastamento de Deus, da figura do pai e do irmão torna-se uma expressão da recusa da comunhão e traduz-se na cultura da servidão (cf. Gen 9, 25-27), com as consequências daí resultantes que se prolongam de geração em geração: rejeição do outro, maus-tratos às pessoas, violação da dignidade e dos direitos fundamentais, institucionalização de desigualdades. Daqui se vê a necessidade duma conversão contínua à Aliança levada à perfeição pela oblação de Cristo na cruz, confiantes de que, «onde abundou o pecado, superabundou a graça (…) por Jesus Cristo» (Rom 5, 20.21). Ele, o Filho amado (cf. Mt 3, 17), veio para revelar o amor do Pai pela humanidade. Todo aquele que escuta o Evangelho e acolhe o seu apelo à conversão, torna-se, para Jesus, «irmão, irmã e mãe» (Mt 12, 50) e, consequentemente, filho adoptivo de seu Pai (cf. Ef 1, 5).

No entanto, os seres humanos não se tornam cristãos, filhos do Pai e irmãos em Cristo por imposição divina, isto é, sem o exercício da liberdade pessoal, sem se converterem livremente a Cristo. Ser filho de Deus requer que primeiro se abrace o imperativo da conversão: «Convertei-vos – dizia Pedro no dia de Pentecostes – e peça cada um o baptismo em nome de Jesus Cristo, para a remissão dos seus pecados; recebereis, então, o dom do Espírito Santo» (Act 2, 38). Todos aqueles que responderam com a fé e a vida àquela pregação de Pedro, entraram na fraternidade da primeira comunidade cristã (cf. 1 Ped 2, 17; Act 1, 15.16; 6, 3; 15, 23): judeus e gregos, escravos e homens livres (cf. 1 Cor 12, 13; Gal 3, 28), cuja diversidade de origem e estado social não diminui a dignidade de cada um, nem exclui ninguém do povo de Deus. Por isso, a comunidade cristã é o lugar da comunhão vivida no amor entre os irmãos (cf. Rom 12, 10; 1 Tes 4, 9; Heb 13, 1; 1 Ped 1, 22; 2 Ped 1, 7).

Tudo isto prova como a Boa Nova de Jesus Cristo – por meio de Quem Deus «renova todas as coisas» (Ap 21, 5)[3] – é capaz de redimir também as relações entre os homens, incluindo a relação entre um escravo e o seu senhor, pondo em evidência aquilo que ambos têm em comum: a filiação adoptiva e o vínculo de fraternidade em Cristo. O próprio Jesus disse aos seus discípulos: «Já não vos chamo servos, visto que um servo não está ao corrente do que faz o seu senhor; mas a vós chamei-vos amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi ao meu Pai» (Jo 15, 15).

manifestacion

As múltiplas faces da escravatura, ontem e hoje

Desde tempos imemoriais, as diferentes sociedades humanas conhecem o fenómeno da sujeição do homem pelo homem. Houve períodos na história da humanidade em que a instituição da escravatura era geralmente admitida e regulamentada pelo direito. Este estabelecia quem nascia livre e quem, pelo contrário, nascia escravo, bem como as condições em que a pessoa, nascida livre, podia perder a sua liberdade ou recuperá-la. Por outras palavras, o próprio direito admitia que algumas pessoas podiam ou deviam ser consideradas propriedade de outra pessoa, a qual podia dispor livremente delas; o escravo podia ser vendido e comprado, cedido e adquirido como se fosse uma mercadoria qualquer.

Hoje, na sequência duma evolução positiva da consciência da humanidade, a escravatura – delito de lesa humanidade[4] – foi formalmente abolida no mundo. O direito de cada pessoa não ser mantida em estado de escravidão ou servidão foi reconhecido, no direito internacional, como norma inderrogável.

Mas, apesar de a comunidade internacional ter adoptado numerosos acordos para pôr termo à escravatura em todas as suas formas e ter lançado diversas estratégias para combater este fenómeno, ainda hoje milhões de pessoas – crianças, homens e mulheres de todas as idades – são privadas da liberdade e constrangidas a viver em condições semelhantes às da escravatura.

Penso em tantos trabalhadores e trabalhadoras, mesmo menores, escravizados nos mais diversos sectores, a nível formal e informal, desde o trabalho doméstico ao trabalho agrícola, da indústria manufactureira à mineração, tanto nos países onde a legislação do trabalho não está conforme às normas e padrões mínimos internacionais, como – ainda que ilegalmente – naqueles cuja legislação protege o trabalhador.

Penso também nas condições de vida de muitos migrantes que, ao longo do seu trajecto dramático, padecem a fome, são privados da liberdade, despojados dos seus bens ou abusados física e sexualmente. Penso em tantos deles que, chegados ao destino depois duma viagem duríssima e dominada pelo medo e a insegurança, ficam detidos em condições às vezes desumanas. Penso em tantos deles que diversas circunstâncias sociais, políticas e económicas impelem a passar à clandestinidade, e naqueles que, para permanecer na legalidade, aceitam viver e trabalhar em condições indignas, especialmente quando as legislações nacionais criam ou permitem uma dependência estrutural do trabalhador migrante em relação ao dador de trabalho como, por exemplo, condicionando a legalidade da estadia ao contrato de trabalho… Sim! Penso no «trabalho escravo».

Penso nas pessoas obrigadas a prostituírem-se, entre as quais se contam muitos menores, e nas escravas e escravos sexuais; nas mulheres forçadas a casar-se, quer as que são vendidas para casamento quer as que são deixadas em sucessão a um familiar por morte do marido, sem que tenham o direito de dar ou não o próprio consentimento.

Não posso deixar de pensar a quantos, menores e adultos, são objecto de tráfico e comercialização para remoção de órgãos, para ser recrutados como soldados, para servir de pedintes, para actividades ilegais como a produção ou venda de drogas, ou para formas disfarçadas de adopção internacional.

Penso, enfim, em todos aqueles que são raptados e mantidos em cativeiro por grupos terroristas, servindo os seus objectivos como combatentes ou, especialmente no que diz respeito às meninas e mulheres, como escravas sexuais. Muitos deles desaparecem, alguns são vendidos várias vezes, torturados, mutilados ou mortos.

Niño soldado

Algumas causas profundas da escravatura

Hoje como ontem, na raiz da escravatura, está uma concepção da pessoa humana que admite a possibilidade de a tratar como um objecto. Quando o pecado corrompe o coração do homem e o afasta do seu Criador e dos seus semelhantes, estes deixam de ser sentidos como seres de igual dignidade, como irmãos e irmãs em humanidade, passando a ser vistos como objectos. Com a força, o engano, a coacção física ou psicológica, a pessoa humana – criada à imagem e semelhança de Deus – é privada da liberdade, mercantilizada, reduzida a propriedade de alguém; é tratada como meio, e não como fim.

Juntamente com esta causa ontológica – a rejeição da humanidade no outro –, há outras causas que concorrem para se explicar as formas actuais de escravatura. Entre elas, penso em primeiro lugar na pobreza, no subdesenvolvimento e na exclusão, especialmente quando os três se aliam com a falta de acesso à educação ou com uma realidade caracterizada por escassas, se não mesmo inexistentes, oportunidades de emprego. Não raro, as vítimas de tráfico e servidão são pessoas que procuravam uma forma de sair da condição de pobreza extrema e, dando crédito a falsas promessas de trabalho, caíram nas mãos das redes criminosas que gerem o tráfico de seres humanos. Estas redes utilizam habilmente as tecnologias informáticas modernas para atrair jovens e adolescentes de todos os cantos do mundo.

Entre as causas da escravatura, deve ser incluída também a corrupção daqueles que, para enriquecer, estão dispostos a tudo. Na realidade, a servidão e o tráfico das pessoas humanas requerem uma cumplicidade que muitas vezes passa através da corrupção dos intermediários, de alguns membros das forças da polícia, de outros actores do Estado ou de variadas instituições, civis e militares. «Isto acontece quando, no centro de um sistema económico, está o deus dinheiro, e não o homem, a pessoa humana. Sim, no centro de cada sistema social ou económico, deve estar a pessoa, imagem de Deus, criada para que fosse o dominador do universo. Quando a pessoa é deslocada e chega o deus dinheiro, dá-se esta inversão de valores».[5]

Outras causas da escravidão são os conflitos armados, as violências, a criminalidade e o terrorismo. Há inúmeras pessoas raptadas para ser vendidas, recrutadas como combatentes ou exploradas sexualmente, enquanto outras se vêem obrigadas a emigrar, deixando tudo o que possuem: terra, casa, propriedades e mesmo os familiares. Estas últimas, impelidas a procurar uma alternativa a tão terríveis condições, mesmo à custa da própria dignidade e sobrevivência, arriscam-se assim a entrar naquele círculo vicioso que as torna presa da miséria, da corrupção e das suas consequências perniciosas.

Bakhita

Um compromisso comum para vencer a escravatura

Quando se observa o fenómeno do comércio de pessoas, do tráfico ilegal de migrantes e de outras faces conhecidas e desconhecidas da escravidão, fica-se frequentemente com a impressão de que o mesmo tem lugar no meio da indiferença geral.

Sem negar que isto seja, infelizmente, verdade em grande parte, apraz-me mencionar o enorme trabalho que muitas congregações religiosas, especialmente femininas, realizam silenciosamente, há tantos anos, a favor das vítimas. Tais institutos actuam em contextos difíceis, por vezes dominados pela violência, procurando quebrar as cadeias invisíveis que mantêm as vítimas presas aos seus traficantes e exploradores; cadeias, cujos elos são feitos não só de subtis mecanismos psicológicos que tornam as vítimas dependentes dos seus algozes, através de chantagem e ameaça a eles e aos seus entes queridos, mas também através de meios materiais, como a apreensão dos documentos de identidade e a violência física. A actividade das congregações religiosas está articulada a três níveis principais: o socorro às vítimas, a sua reabilitação sob o perfil psicológico e formativo e a sua reintegração na sociedade de destino ou de origem.

Este trabalho imenso, que requer coragem, paciência e perseverança, merece o aplauso da Igreja inteira e da sociedade. Naturalmente o aplauso, por si só, não basta para se pôr termo ao flagelo da exploração da pessoa humana. Faz falta também um tríplice empenho a nível institucional: prevenção, protecção das vítimas e acção judicial contra os responsáveis. Além disso, assim como as organizações criminosas usam redes globais para alcançar os seus objectivos, assim também a acção para vencer este fenómeno requer um esforço comum e igualmente global por parte dos diferentes actores que compõem a sociedade.

Os Estados deveriam vigiar por que as respectivas legislações nacionais sobre as migrações, o trabalho, as adopções, a transferência das empresas e a comercialização de produtos feitos por meio da exploração do trabalho sejam efectivamente respeitadoras da dignidade da pessoa. São necessárias leis justas, centradas na pessoa humana, que defendam os seus direitos fundamentais e, se violados, os recuperem reabilitando quem é vítima e assegurando a sua incolumidade, como são necessários também mecanismos eficazes de controle da correcta aplicação de tais normas, que não deixem espaço à corrupção e à impunidade. É preciso ainda que seja reconhecido o papel da mulher na sociedade, intervindo também no plano cultural e da comunicação para se obter os resultados esperados.

As organizações intergovernamentais são chamadas, no respeito pelo princípio da subsidiariedade, a implementar iniciativas coordenadas para combater as redes transnacionais do crime organizado que gerem o mercado de pessoas humanas e o tráfico ilegal dos migrantes. Torna-se necessária uma cooperação a vários níveis, que englobe as instituições nacionais e internacionais, bem como as organizações da sociedade civil e do mundo empresarial.

Com efeito, as empresas[6] têm o dever não só de garantir aos seus empregados condições de trabalho dignas e salários adequados, mas também de vigiar por que não tenham lugar, nas cadeias de distribuição, formas de servidão ou tráfico de pessoas humanas. A par da responsabilidade social da empresa, aparece depois a responsabilidade social do consumidor. Na realidade, cada pessoa deveria ter consciência de que «comprar é sempre um acto moral, para além de económico».[7]

As organizações da sociedade civil, por sua vez, têm o dever de sensibilizar e estimular as consciências sobre os passos necessários para combater e erradicar a cultura da servidão.

Nos últimos anos, a Santa Sé, acolhendo o grito de sofrimento das vítimas do tráfico e a voz das congregações religiosas que as acompanham rumo à libertação, multiplicou os apelos à comunidade internacional pedindo que os diversos actores unam os seus esforços e cooperem para acabar com este flagelo.[8] Além disso, foram organizados alguns encontros com a finalidade de dar visibilidade ao fenómeno do tráfico de pessoas e facilitar a colaboração entre os diferentes actores, incluindo peritos do mundo académico e das organizações internacionais, forças da polícia dos diferentes países de origem, trânsito e destino dos migrantes, e representantes dos grupos eclesiais comprometidos em favor das vítimas. Espero que este empenho continue e se reforce nos próximos anos.

PalomaGlobalizar a fraternidade, não a escravidão nem a indiferença

Na sua actividade de «proclamação da verdade do amor de Cristo na sociedade»,[9] a Igreja não cessa de se empenhar em acções de carácter caritativo guiada pela verdade sobre o homem. Ela tem o dever de mostrar a todos o caminho da conversão, que induz a voltar os olhos para o próximo, a ver no outro – seja ele quem for – um irmão e uma irmã em humanidade, a reconhecer a sua dignidade intrínseca na verdade e na liberdade, como nos ensina a história de Josefina Bakhita, a Santa originária da região do Darfur, no Sudão. Raptada por traficantes de escravos e vendida a patrões desalmados desde a idade de nove anos, haveria de tornar-se, depois de dolorosas vicissitudes, «uma livre filha de Deus» mediante a fé vivida na consagração religiosa e no serviço aos outros, especialmente aos pequenos e fracos. Esta Santa, que viveu a cavalo entre os séculos XIX e XX, é também hoje testemunha exemplar de esperança[10] para as numerosas vítimas da escravatura e pode apoiar os esforços de quantos se dedicam à luta contra esta «ferida no corpo da humanidade contemporânea, uma chaga na carne de Cristo».[11]

Nesta perspectiva, desejo convidar cada um, segundo a respectiva missão e responsabilidades particulares, a realizar gestos de fraternidade a bem de quantos são mantidos em estado de servidão. Perguntemo-nos, enquanto comunidade e indivíduo, como nos sentimos interpelados quando, na vida quotidiana, nos encontramos ou lidamos com pessoas que poderiam ser vítimas do tráfico de seres humanos ou, quando temos de comprar, se escolhemos produtos que poderiam razoavelmente resultar da exploração de outras pessoas. Há alguns de nós que, por indiferença, porque distraídos com as preocupações diárias, ou por razões económicas, fecham os olhos. Outros, pelo contrário, optam por fazer algo de positivo, comprometendo-se nas associações da sociedade civil ou praticando no dia-a-dia pequenos gestos como dirigir uma palavra, trocar um cumprimento, dizer «bom dia» ou oferecer um sorriso; estes gestos, que têm imenso valor e não nos custam nada, podem dar esperança, abrir estradas, mudar a vida a uma pessoa que tacteia na invisibilidade e mudar também a nossa vida face a esta realidade.

Temos de reconhecer que estamos perante um fenómeno mundial que excede as competências de uma única comunidade ou nação. Para vencê-lo, é preciso uma mobilização de dimensões comparáveis às do próprio fenómeno. Por esta razão, lanço um veemente apelo a todos os homens e mulheres de boa vontade e a quantos, mesmo nos mais altos níveis das instituições, são testemunhas, de perto ou de longe, do flagelo da escravidão contemporânea, para que não se tornem cúmplices deste mal, não afastem o olhar à vista dos sofrimentos de seus irmãos e irmãs em humanidade, privados de liberdade e dignidade, mas tenham a coragem de tocar a carne sofredora de Cristo,[12] o Qual Se torna visível através dos rostos inumeráveis daqueles a quem Ele mesmo chama os «meus irmãos mais pequeninos» (Mt 25, 40.45).

Sabemos que Deus perguntará a cada um de nós: Que fizeste do teu irmão? (cf. Gen 4, 9-10). A globalização da indiferença, que hoje pesa sobre a vida de tantas irmãs e de tantos irmãos, requer de todos nós que nos façamos artífices duma globalização da solidariedade e da fraternidade que possa devolver-lhes a esperança e levá-los a retomar, com coragem, o caminho através dos problemas do nosso tempo e as novas perspectivas que este traz consigo e que Deus coloca nas nossas mãos.
FRANCISCUS

[1] N. 1.

[2] Mensagem para o Dia Mundial da Paz 2014, 2.

[3] Cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 11.

[4] Cf. Discurso à Delegação internacional da Associação de Direito Penal (23 de Outubro de 2014): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 30/X/2014), 9.

[5] Discurso aos participantes no Encontro mundial dos Movimentos Populares (28 de Outubro de 2014): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 06/XI/2014), 9.

[6] Cf. Pontifício Conselho «Justiça e Paz», La vocazione del leader d’impresa. Una riflessione (Milão e Roma, 2013).

[7] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate, 66.

[8] Cf. Mensagem ao Senhor Guy Rydes, Director-Geral da Organização Internacional do Trabalho, por ocasião da 103ª sessão da Conferência da O.I.T. (22 de Maio de 2014): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 05/VI/2014), 7.

[9] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate, 5.

[10] «Mediante o conhecimento desta esperança, ela estava “redimida”, já não se sentia escrava, mas uma livre filha de Deus. Entendia aquilo que Paulo queria dizer quando lembrava aos Efésios que, antes, estavam sem esperança e sem Deus no mundo: sem esperança porque sem Deus» ( Bento XVI, Carta enc. Spe salvi, 3).

[11] Discurso aos participantes na II Conferência Internacional « Combating Human Trafficking: Church and Law Enforcement in partnership» (10 de Abril de 2014): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 17/IV/2014), 8; cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 270.

[12] Cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 24; 270.

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http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/messages/peace/documents/papa-francesco_20141208_messaggio-xlviii-giornata-mondiale-pace-2015.html

 

Elementos da espiritualidade comboniana

Comboni

Estamos a celebrar os 150 anos do Plano de São Daniel Comboni. O texto teve mais de uma edição. A nossa reflexão será baseada na IV ed., publicada em Verona pela tipografia Episcopal de A. Merlo, intitulado «Plano para a regeneração da África proposto pelo Padre Daniele Comboni missionário apostólico da África central, Superior dos institutos dos negros no Egipto».

ELEMENTOS DA ESPIRITUALIDADE COMBONIANA QUE EMERGEM DO PLANO PARA A REGENERAÇÃO DA NIGRICIA

Introdução
A primeira pergunta que nos colocamos é se será mais oportuno chamar o texto de Comboni plano ou projecto. Embora o termo hebraico que indica esta realidade seja constantemente traduzido por projecto, plano ou desígnio, a questão merece ser colocada. A palavra grega traduzida por “projecto” dá a ideia de movimento. A noção de plano indica algo de estático, ao passo que a noção de projecto implica dinamismo. O plano habitualmente é uma elaboração fria, sem qualquer envolvimento subjectivo, sem coração; o projecto é vivido desde dentro, com uma carga subjectiva forte, e é esse o caso do texto que São Daniel Comboni apresentou à Igreja. Há envolvimento do coração de Comboni no texto do plano, por isso seria talvez mais oportuno falar de «Projecto para a regeneração da Nigricia». São Daniel viveu a obra da regeneração da Nigricia desde dentro (é a imagem de Potier) antes de chegar às suas implicações práticas. Nas linhas que se seguem continuaremos a chamar o texto de Comboni plano, por respeito à memória do nosso Padre fundador, mas sem esquecer o aspecto dinâmico, aquele dinamismo que nasce da contemplação do Coração de Cristo Bom Pastor, fonte da sua missão.

A experiência carismática em São Pedro, por ocasião da canonização de Santa Margarida Maria Alacoque, foi o momento fundante deste plano mas não o único, como bem sublinha o Padre Geral: «O Plano não é o texto, mas a vida escondida nas palavras, nos pensamentos, nas intuições, nos sonhos e nos desejos que foram o motor capaz de mover as mãos de Comboni para deixar vestígios daquilo que o Espírito queria exprimir e que vai muito para além das ideias e das estratégias que serão de algum modo resposta ao grito que sobe e importuna os ouvidos de Deus para suscitar a sua misericórdia” (Il Piano di Comboni, Carta do Superior Geral, MCCJ Bulletin 258, Janeiro 2014).

Podemos dizer que o plano nasce, por um lado, de uma espiritualidade «com os pés assentes na terra», feita de estudo e de pesquisa, e, por outro, da experiência do amor de Deus feita por Comboni e que ele traduz neste texto a benefício dos seus irmãos e irmãs africanas.

O nosso contributo divide-se em cinco pontos:

  1. Um plano nascido de um olhar diferente.
  2. Um plano movido pela indignação.
  3. Um plano a realizar a várias mãos.
  4. Um plano com um toque de… «género».
  5. Um plano a pagar com a própria vida.

1. Um plano nascido de um olhar diferente

«Porém, o católico, habituado a julgar as coisas com a luz que lhe vem do alto, olhou a África não através do miserável prisma dos interesses humanos, mas do puro raio da sua fé; e descobriu lá uma infinidade de irmãos pertencentes à mesma família, que têm nos Céus um pai comum, ainda curvados sob o jugo de Satanás e à beira do mais horrendo precipício. Então, levado pelo ímpeto daquela caridade que se acendeu com divina chama aos pés do Gólgota e, saída do lado do Crucificado, para abraçar toda a família humana, sentiu que o seu coração palpitava mais fortemente; e uma força divina pareceu empurrá-lo para aquelas bárbaras terras, para apertar entre os seus braços e dar um ósculo de paz e de amor àqueles infelizes irmãos seus, sobre os quais pesa ainda o tremendo anátema de Cam» (Escritos, 2742).

O parágrafo mais denso, que está na base de tudo e que constitui o fundamento em absoluto de todo o resto do texto é o n. 2742: «o católico, habituado a julgar as coisas com a luz que lhe vem do alto…». Comboni é este católico que, à força de julgar sempre a partir das inspirações divinas, ganhou um hábito que o leva a olhar a África não a partir dos interesses humanos e a descobrir irmãos que têm o seu mesmo Pai e aos quais é preciso levar a Boa Nova da Salvação. Evidentemente para julgar a partir do alto, é preciso renascer do alto (Jo 3); renascer do alto é um dom de Deus mas requer também uma ascese (esforço). A fonte deste olhar diferente sobre o africano, considerado um irmão pertencente à própria família, que Comboni quer apertar entre os braços dando o beijo de paz e de amor, é a caridade acesa pela divina chama no Gólgota, saída do lado do Crucificado. A experiência do amor do crucificado é o motor do ímpeto missionário que o empurra para esta periferia, a África, vista pelos outros sob o prisma dos interesses humanos. A experiência da fé, que altera o seu olhar sobre o africano, a experiência da caridade divina que o impele para estas «bárbaras terras» são portanto fonte da sua confiança no homem africano que ele associa como protagonista à obra de regeneração da África, «converter a África com a África». Hoje, nas nossas comunidades, nas nossas missões, este olhar de fé sobre os acontecimentos, sobre as pessoas e sobre a experiência do amor do Crucificado, que não está nunca separado do amor ao próximo, é um elemento importante para a construção de uma fraternidade e confraternidade que vai para além da cor da pele, da etnia, da proveniência provincial, etc. O plano nasce da fé que opera através da caridade em vista de uma libertação do homem africano: «A nossa Obra baseia-se na fé. É uma linguagem pouco entendida na Terra, até entre os bons. Mas compreenderam-na os santos, os únicos a quem devemos imitar» (Escritos, 6933).

O plano tem um centro espiritual, o Coração de Jesus, e alguns centros materiais, os institutos onde serão preparados os evangelizadores e as evangelizadoras, onde podem viver e trabalhar quer africanos quer europeus (cf. Escritos, 2764) e que irão para o centro da África.

“Podemos dizer que o plano nasce, por um lado, de uma espiritualidade «com os pés assentes na terra», feita de estudo e de pesquisa, e, por outro, da experiência do amor de Deus feita por Comboni e que ele traduz neste texto a benefício dos seus irmãos e irmãs africanas”.

2. Um plano movido pela indignação

150 years«Porém, a desoladora ideia de ver suspensa, talvez por muitos séculos, a obra da Igreja em favor de tantos milhões de almas que gemem ainda nas trevas e na sombra da morte, deve ferir profundamente e magoar o coração de todo o devoto e fiel católico, inflamado do espírito da caridade de Jesus Cristo. Por isso, para seguir o impulso desta força sobre-humana e para afastar para sempre do filantropo católico a desoladora ideia de deixar envolvidas na infidelidade e na barbárie essas imensas e povoadas regiões, sem dúvida das mais necessitadas e abandonadas do mundo, é preciso abandonar o caminho seguido até agora, mudar o antigo sistema e criar um novo plano que leve eficazmente ao desejado fim» (Escritos, 2752).

O plano nasce da indignação provocada em Comboni pelo estado de abandono em que encontrava a África do ponto de vista da fé, mas também do desenvolvimento a nível humano. Comboni é aquele católico cheio de piedade, inflamado pela caridade de Jesus Cristo, que se entristece e fica desolado perante a situação da África; que se indigna «perdoar-se-nos-á se o ímpeto do coração, onde manifestamos sentir forte o grito de angústia que a todos nós enviam aqueles infelizes filhos de Adão e irmãos nossos, tiver empurrado a mente para fora da linha da verdade e da certeza» (Escritos, 2754). Uma indignação que o impele à procura de um caminho para a evangelização da África, sem medo de errar, sem uma certeza absoluta; mesmo se erra, será perdoado. O medo de errar paralisa a acção evangelizadora e fecha-nos em nós mesmos, limitando a nossa audácia de ir à procura de novos caminhos. Prefiro, diz o Papa Francisco, «uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças» (EG 49).

O próprio Deus se indigna diante de todas as formas de não dignidade da pessoa humana. «Vi a opressão do meu povo que está no Egipto, e ouvi o seu clamor por causa dos seus inspectores; conheço, na verdade, os seus sofrimentos» (Ex 3,7). É a indignação de Jesus perante as multidões prostradas como ovelhas sem pastor. Como toda a verdadeira indignação, que nasce da contemplação, a indignação de Comboni não permaneceu estéril, mas levou-o à compaixão e à acção. Uma acção que se caracteriza pela profunda partilha com a África: «A África e os pobres negros apoderaram-se do meu coração, que vive só para eles, sobretudo depois que o representante de Jesus Cristo, o Santo Padre, me encorajou a trabalhar pela África» (Escritos, 941).

Muitas das nossas indignações diante dos horrores do mundo permanecem estéreis porque, enquanto condenamos as situações de guerra que há no mundo, ao mesmo tempo reproduzimos nas nossas comunidades e nas nossas missões os mesmos mecanismos de guerra entre nós, ainda que a uma escala menor. «Dentro do povo de Deus e nas diferentes comunidades, quantas guerras! O mundanismo espiritual leva alguns cristãos a estar em guerra com outros cristãos que se interpõem na sua busca pelo poder, prestígio, prazer ou segurança económica» (EG 98).

Além disso, a nossa indignação permanece estéril quando nos indignamos diante da pobreza extrema na qual se encontram milhares de irmãos contemporâneos, mas somos incapazes de pequenos sacrifícios que a missão nos pede. Pensamos neste momento em certos missionários que aceitam a destinação com a condição que, no lugar para onde forem, haja meios tecnológicos, como por ex. internet. Quando existe a paixão pela missão e a compaixão pelas pessoas, o resto é supérfluo.

3. Um plano a realizar a várias mãos

Familia Comboniana«A obra deve ser católica, não espanhola, francesa, alemã ou italiana. Todos os católicos devem ajudar os pobres negros, porque uma nação só não pode socorrer toda a raça negra» (Escritos, 944).

No plano aparece claramente esta dimensão da colaboração. O apelo à colaboração para a obra da regeneração da África deriva da consciência que São Daniel Comboni tem de que a obra é de Deus e não um assunto pessoal, é assunto da Igreja: «Como a obra que tenho entre as mãos é toda de Deus, é com Deus especialmente com quem há que tratar todos os assuntos, grandes ou pequenos da Missão» (E 3615).

Esta colaboração manifesta-se no momento da formação dos evangelizadores e evangelizadoras. Embora valorizando as riquezas carismáticas de cada Instituto religioso na formação dos africanos e africanas, São Daniel Comboni indica aquilo que não deve faltar no caminho formativo. Em primeiro lugar, o Espírito de Jesus Cristo (cf. Escritos, 2770): trata-se de radicar nos seus corações (no coração dos formandos, homens e mulheres) o Espírito de Jesus Cristo.

O que é que entende Comboni por Espírito de Jesus Cristo? Na vida de Jesus Cristo há dois elementos fundamentais: a experiência de Deus como Pai (Abba) e a experiência do Reino. Radicar o espírito de Jesus Cristo no coração dos evangelizadores e das evangelizadoras quer dizer levá-los a fazer a experiência de Deus como Pai, isto é, ajudá-los a fazer experiência do cristianismo não como um conjunto de leis, como uma ideia, mas como um encontro com a pessoa de Jesus (cf. Deus Caritas est, 1); é o único modo para desenvolver neles a liberdade dos filhos de Deus contra qualquer medo de espíritos que paralisam o crescimento humano, espiritual e social.

O outro elemento é desenvolver nos africanos a paixão pelo anúncio do reino de Deus de amor, de paz, de justiça e de misericórdia; o único modo para dissipar as densas trevas que cobriam a vasta extensão da África Central (Escritos, 2741).

Um terceiro elemento que caracteriza o espírito de Jesus é a humildade: «sendo rico, fez-se pobre por vós, para que vos tornásseis ricos por meio da sua pobreza» (cf. 2Cor 8,9).

4. Um plano com um toque de… «género»

«O plano, portanto, que nós propomos é: a criação de outros tantos institutos de ambos os sexos, que deveriam rodear toda a África, criteriosamente situados em lugares oportunos, à menor distância possível das regiões interiores da Nigrícia, dentro de zonas seguras e algo civilizadas, nas quais pudesse viver e trabalhar tanto o europeu como o indígena africano» (Escritos, 2764).

A valorização da mulher na obra da evangelização por parte de São Daniel Comboni não é só uma opção estratégica no sentido de que as mulheres resistiriam mais ao clima duro da África (falando das europeias) ou entrariam mais facilmente em certos ambientes hostis ao cristianismo. A valorização da figura feminina no seu plano para a regeneração da Nigrícia é uma opção de vida. É uma das consequências daquele olhar contemplativo sobre a realidade: para aqueles que estão em Cristo, não há judeu nem grego, circunciso ou incircunciso… homem ou mulher, mas apenas Cristo, que é tudo e está em todos (cf. Col 3, 9-11).

Explica-se assim também a devoção de São Daniel a Nossa Senhora. A par do título “Virgem da Nigrícia”, encontramos, nos seus Escritos, diversos títulos com que Comboni se refere à Mãe de Deus. Um dos nossos confrades até preparou uma Litania com base nos títulos utilizados por Comboni para se dirigir a Maria.

São Daniel Comboni está em sintonia com o património da grande tradição católica: longe de qualquer devocionismo, Maria é o coração da Igreja. Na Igreja, dizia von Balthasar, Maria tem um lugar mais alto que Pedro e na Evangelii Gaudium, o Papa Francisco diz que Maria é mais importante que os bispos. É preciso portanto revalorizar esta componente feminina na Igreja em equilíbrio com a masculina para não cair, por um lado, no machismo e no clericalismo, e, por outro, no feminismo exasperado ou simplesmente em certas teorias de género que tão mal fazem à humanidade. Na vida de São Daniel Comboni este equilíbrio existiu, porque ao lado da Virgem Maria, está também São José, seu esposo, e no seu carácter – podemos dizer – os dois elementos entrecruzam-se: Comboni é capaz de defender-se com virilidade quando é caluniado e conferir verdade aos factos com palavras por vezes muitos duras mas, ao mesmo tempo, é capaz de perdoar profundamente quem o acusa falsamente. Ao vigor, une o elemento da misericórdia, da compaixão e da ternura, que são tipicamente femininos. Não é por acaso que a comissão que o encarregou de executar o plano se chama «Sociedade dos SS. Corações de Jesus e de Maria para a regeneração da Nigrícia, sob o patrocínio da Virgem Imaculada, de São José, seu esposo, e dos príncipes dos Apóstolos».

5. Um plano a pagar com a própria vida

Comboni y la Virgen«Sobre esta grande ideia se fixou o nosso pensamento e a regeneração da África com a África parece-nos ser o único programa que se deve seguir para realizar tão brilhante conquista. Por isso, em nossa pequenez, julgámos lícito sugerir humildemente um caminho que, ao segui-lo, permita alcançar com maior probabilidade a alta meta para a qual se orientam sempre todos os pensamentos da nossa vida e pela qual estaremos contentes de derramar o nosso sangue até à ultima gota» (E 2753).

Existe uma estreita relação entre o plano elaborado por São Daniel Comboni e a sua vida concreta. Todos os seus pensamentos são dirigidos para o plano pelo qual estará disposto a dar o seu sangue até à última gota. É a imagem do Bom Pastor que veio para que todos tenham a vida e a tenham em abundância (cf. Jo 10,10).

Esta afirmação por parte de Comboni não é retórica. São Daniel, a 10 de Outubro de 1881, morrerá em Cartum, no auge de uma vida inteiramente dedicada à África e aos Africanos. Por trás do plano de Comboni há nomes, apelidos, rostos de africanos e africanas pelos quais Comboni dá a própria vida. Podemos dizer que aquilo que o Papa Francisco afirma a propósito dos pastores da Igreja é inteiramente verdade no caso de São Daniel Comboni: podemos sentir o cheiro dos africanos sob a veste do infatigável missionário da África. Portanto, para que um plano pastoral, para que um projecto comunitário possa sair do papel e ser apurado – ensina-nos São Daniel Comboni – é preciso pôr aí coração, amor, com a consciência de que por trás daquele plano há milhares de vidas que esperam a sua regeneração simultaneamente espiritual e humana, é preciso estar dispostos a dar o seu próprio contributo, a dar o seu próprio sangue pela sua realização. Porque é que por vezes, efectivamente, os nossos planos pastorais não saem do papel? Talvez careçam daquele envolvimento afectivo e efectivo com as pessoas para as quais o plano se torna um pedaço de papel a mais, ou porque não estamos dispostos a dar qualquer gota de sangue pela sua realização, energia, tempo, etc.

Conclusão

No fim desta breve reflexão, podemos dizer que para compreender o plano, é preciso entrar em profundo diálogo com o seu autor, São Daniel Comboni, com a sua vida e com toda a sua obra. É preciso descobrir o espírito que anima o plano, para além das pobres palavras que o traduzem, para não se perder em debates estéreis, como por ex. «filho de Cam» ou outros do género.

Salvar Africa con Africa

O plano traduz a paixão de São Daniel Comboni pela África, a sua preocupação em conquistar a pérola negra para a Igreja de Jesus Cristo. O plano nasceu de uma visão de fé que move à indignação-compaixão-acção diante da situação de abandono na qual se encontrava a África. São Daniel Comboni compreendeu que a evangelização da África não era um assunto pessoal, mas da Igreja. Procurou o confronto e o diálogo com o pontífice, com o prefeito de Propaganda Fide e com personalidades ligadas à experiência africana, em suma procurou colaboração envolvendo estreitamente a figura feminina. Para a elaboração e a execução do plano, São Daniel Comboni deu a vida, porque, por trás do plano, compreendeu que há uma multidão de vidas, uma multidão de irmãos e irmãs que esperam a mensagem da regeneração.

Novembro de 2014

P. Fidèle Katsan, mccj