Leigos Missionários Combonianos

Laicado e Ministerialidade

Laicado
Laicado

Laicado e ministerialidade

Tentaremos fazer uma reflexão sobre a ministerialidade de uma perspectiva laical, em particular do ponto de vista da vocação missionária comboniana. Mas antes de adentrar-nos nestes ministérios e serviços do ponto de vista da fé, creio que seja importante enquadrar o assunto.

A nossa vida dá uma reviravolta quando fazemos um encontro pessoal com Jesus de Nazaré. Partilhamos esta sociedade com muitos homens e mulheres de boa vontade. Cada um, com princípios e valores que orientam as suas acções e as suas escolhas de vida. Mas para nós existe um «antes de» e um «depois de» ter conhecido Jesus. Como os primeiros discípulos, um dia encontrámos Jesus no nosso caminho. O nosso coração estremeceu e os nossos lábios perguntaram «Onde moras?». E a sua resposta foi «vem e vê». A partir daquele momento a nossa vida mudou.

São muitos os caminhos através dos quais chegamos a este encontro: para muitos foi graças às nossas famílias, às nossas comunidades cristãs, aos nossos amigos, a circunstâncias da vida que nos aconteceram… indubitavelmente a casuística é muito vasta. Mas o que é realmente determinante, é a resposta dada, a partir da liberdade, e as consequências desta resposta em cada uma das nossas vidas. A resposta é livre, ninguém nos obriga a dá-la, é uma graça que recebemos e, consequentemente, o reconhecimento de uma nova vida.

O leigo acima de tudo é um seguidor de Cristo. Não se trata de seguir uma ideologia nem simplesmente de lutar por causas justas que contribuam para uma nova humanidade mais justa e digna para todos, nem significa seguir todos os preceitos da religião que podem ajudar-nos na nossa relação com Deus. Ser cristãos significa antes de mais seguir Jesus, sair da nossa zona de conforto e pôr-nos a caminho. Pegar no necessário para caminhar ligeiros e estar sempre abertos e disponíveis neste avançar. Jesus nos mostrará, ao longo do caminho, qual é a nossa parte de responsabilidade no anúncio e construção do Reino.

Nós dizemos estar em constante discernimento que não é um estado de diálogo constante com o Senhor. É verdade que existem momentos especiais de discernimento na vida de cada pessoa. São aqueles momentos que dizem respeito à nossa vocação principal, como no caso do matrimónio ou da vocação à qual nos sentimos chamados, como a vocação missionária, e também o género de profissão através da qual queremos ou sentimos poder servir os outros, escolhendo um certo tipo de estudos ou outro, um dado trabalho ou outro. É fundamental para a vida de toda a pessoa compreender esta chamada a ser enfermeiro, médico, professor, dirigente de uma empresa, advogado, educador, trabalhar no campo social, ou ser político, artesão, etc.

Momentos vitais que na nossa adolescência, juventude e idade adulta se apresentam de maneira significativa. Mas, para lá destes momentos, que nos manterão no caminho nos momentos difíceis, neste caminhar queremos manter-nos em escuta. Não queremos acomodar-nos. Na vida apresentam-se continuamente novos desafios e novas chamadas da parte de Jesus. Para nós, como missionários, ter a mala pronta é algo que faz parte da nossa vocação. Somos chamados a acompanhar as pessoas, as comunidades durante um determinado período, para depois ir embora, porque o ir embora é parte essencial. Sair ou continuar a crescer. Não permanecemos sempre iguais durante anos porque reconhecemos que as necessidades mudam. Somos chamados a deixar a nossa terra e a viajar para outros países, para outras culturas; somos chamados a desenvolver novos serviços, a regressar aos nossos lugares de origem, a assumir novos empenhos: tudo isto faz parte da nossa vocação. Em cada chamada, em cada nova mudança, devemos compreender quais são os planos do Senhor para nós. Porque é que nos pede para ir para outro continente ou para regressar ao nosso lugar de origem quando estávamos a fazer tão bem junto daquela gente, quando inclusive parecíamos tão necessários naquele lugar, a vida leva-nos a mudar de lugar, a começar de novo…

Porque é que quando nos parece ter chegado a um porto definitivo, há alguma coisa dentro de nós que nos interroga, nos inquieta? É o Senhor que nos fala. Com Ele temos uma relação de amizade que nos ajuda a crescer. Como amigos partilhamos a vida e os nossos projectos que a atravessam. Com momentos de maior estabilidade, mas também com momentos de novos desafios. Não viemos para descansar nesta terra, mas para fazer frutificar a vida e para permitir e lutar a fim de que também outros possam usufruir dela.

Nós respondemos a esta chamada não só de maneira individual, mas também a partir de dentro de uma comunidade. Não caminhamos sozinhos. Isto é parte da nossa vocação cristã, a pertença à Igreja, tal como nos sentimos parte também de toda a humanidade. E como parte desta Igreja sentimo-nos chamados a um serviço comum. Como Leigos Missionários Combonianos (LMC) sentimos esta pertença à Igreja de Jesus. E sentimos que esta vocação específica que recebemos é uma vocação e uma responsabilidade comunitária. Temos uma chamada pessoal, mas também uma chamada como comunidade e comunidade de comunidades. Reconhecemos a Igreja como sacramento universal de salvação, cada um com a sua especificidade, dons e carisma para o anúncio e a construção do Reino.

Jesus chama os seus discípulos a viver, a percorrer o caminho em comunidade. Sabemos que só com a ajuda de Jesus podemos caminhar e como comunidade temos necessidade desta espiritualidade profunda que nos une a Jesus, ao Pai e ao Espírito. Um caminho onde a oração, a vida de fé e a comunidade se tornam alimento e referência para a vida do LMC.

A centralidade da missão em Comboni. A Igreja ao serviço da missão

Comboni tinha bem clara a centralidade da missão na sua vocação e a necessidade desta na Igreja. Perante as necessidades dos nossos irmãos e irmãs mais necessitados somos chamados a dar uma resposta. E esta resposta é de tal modo necessária e complexa que não somos chamados a dá-la individualmente, mas como Igreja. Todos e cada um de nós cristãos somos chamados a responder a esta chamada. Independentemente do nosso estado eclesial, cada um de nós deve dar uma resposta de fé. Jesus chama cada um a caminhar. E é pela complexidade das necessidades existentes que o Espírito suscita no mundo e na sua Igreja vocações diferentes, carismas diferentes que dêm o seu contributo a esta realidade. Identificar a Igreja com o clero ou com os religiosos e as religiosas significa não compreender Jesus, significa não escutar o Espírito.

A actividade e a chamada ao sacerdócio ou à vida religiosa nos seus numerosos aspectos é fundamental para o mundo, mas não mais do que o empenho de todos e de cada um dos leigos. A Igreja não tem só uma responsabilidade ligada à religiosidade e espiritualidade das pessoas. Temos uma responsabilidade social, familiar, ambiental, educativa, sanitária, etc. com todo o mundo.

As coisas do dia a dia são as coisas de Deus. As pequenas coisas são as coisas de Deus. A atenção a cada pessoa no concreto e nas necessidades globais são responsabilidade dos seguidores de Jesus. E em todas estas coisas, o papel do laicado é fundamental, do homem e da mulher, em campo material e espiritual… assim o entendeu Comboni e assim o entendemos nós também.

Comboni

O leigo no mundo

Nesta chamada global que recebemos, a Igreja apresenta-se como comunidade de referência. É nutrimento para o serviço. Lugar onde retomar as forças, onde nutrir-se de maneira privilegiada mesmo se não única.

Como leigos somos chamados a fazer nascer raízes que estabilizem o terreno e o enriqueçam, somos chamados a criar redes de solidariedade e de relação que articulem a sociedade, através da família, das pequenas comunidades de condomínio, de bairro, entidades sociais, empresas… somos grandes criadores de redes de relação, colaboração e trabalho. Vivemos envolvidos em todas estas redes e somos chamados a animá-las, a dar-lhes uma espiritualidade para que estejam ao serviço das pessoas, sobretudo dos mais fracos. Somos chamados a incluir todas as pessoas. O nosso olhar deve concentrar-se nos mais pobres e abandonados de que falava Comboni, nos excluídos desta sociedade, deve ser um olhar que nos impele a estar nas periferias porque é a partir de baixo que as coisas se vêem de maneira diferente. Não podemos adaptar-nos a uma sociedade onde não todos têm uma vida digna. Uma sociedade onde se premeia o ter e não o ser e o consumo que está a devastar um planeta finito que grita e reclama a nossa responsabilidade global.

Esta visão que deve interrogar a nossa vida pede-nos acções concretas.

A chamada do leigo é uma chamada ao serviço da humanidade. Uma chamada que para alguns será de serviço no interior da nossa Igreja. Não podemos pensar que o bom leigo seja aquele que ajuda na paróquia e perder de vista a nossa vocação de serviço ao mundo. Alguns serviços internos são necessários, mas a Igreja é chamada a sair.  A ir com Jesus para o caminho, a ir de terra em terra, de casa em casa, a ajudar nas pequenas e grandes coisas. Somos chamados a ser sal que dá sabor, fermento na massa… chamados a estar no mundo e a contribuir de maneira significativa. Não podemos permanecer em casa onde nos sentimos bem, onde nos compreendemos uns aos outros. Somos chamados a sair. A Igreja não nasce para si mesma, mas para ser comunidade de crentes que segue Jesus e serve os mais necessitados. Por isso sentimo-nos chamados a ser de ajuda no crescimento das comunidades humanas (também as cristãs).

Qual é a resposta que estamos a dar a esta chamada como LMC?

Actualmente há uma ampla reflexão em toda a Igreja sobre o específico missionário. Sobre quais são e deveriam ser os nossos serviços enquanto missionários, os nossos ministérios específicos. Perdeu-se já a referencialidade geográfica da missão, a referência entre um Norte rico e um Sul a desenvolver, onde as desigualdades e as dificuldades estão presentes em todos os países, apesar de em alguns continuar a concentrar-se a maior parte das riquezas e das possibilidades enquanto noutros as dificuldades são muito mais graves… De facto, a miséria alastra entre os sem abrigo nos chamados países ricos, as migrações forçadas por causa da pobreza, das guerras, das perseguições por motivos diversos, as alterações climáticas e outros factores estão a fazer com que um fenómeno desde sempre presente na humanidade se esteja a agravar. A pandemia do COVID-19 recorda-nos a globalidade da nossa humanidade acima de barreiras e fronteiras. Atinge-nos a todos e a todas do mesmo modo. Até agora o dinheiro parecia ser o único capaz de viajar sem passaporte, mas agora parece que possa fazê-lo também o vírus.

Só num mundo justo todos poderemos viver em paz e prosperidade. As desigualdades salariais, os conflitos, o consumo desatinado ao ponto de derreter os gelos dos polos e assim por diante acabam por influenciar e ter consequências sobre toda a humanidade. As barreiras e a polícia, que estejam nas fronteiras ou nas casas ou nas zonas urbanas de quem tem mais, não obterão um mundo melhor para todos nem para os que aí se refugiam.

Perante tudo isto, o debate e a reflexão sobre o específico do laicado missionário nesta nova época é claro.  Não terei a pretensão de entrar no assunto de maneira teórica. Apresentar-vos-ei simplesmente algumas das actividades em que estamos presentes como leigos para dar uma resposta à chamada recebida.

É esta a nossa ministerialidade, o serviço a que nos sentimos chamados. Uma resposta de vida, não teórica, que estamos a dar. Não me alongarei. Indicarei só alguns exemplos que possam clarificar; tantos outros permanecerão no anonimato… não por acaso somos chamados a ser pedras escondidas.

Temos amigos e amigas que trabalham com os pigmeus e com o resto da população na República Centro-africana, um país onde estamos há mais de 25 anos. No meio de quantos são considerados como servos da maioria da população; fazendo de ponte de inclusão ou tomando a nosso cargo a responsabilidade de uma rede de escolas primárias num país que está a atravessar vários golpes de estado e se encontra desde há anos numa situação de guerra que não permite ao Estado fornecer estes serviços.

No Perú acompanhamos a gente na periferia das grandes cidades. Nos estabelecimentos abusivos onde quem vem do campo arranca um pedaço de terra à cidade para viver, sem luz, sem água nem esgotos. Poucas famílias que lutam por uma vida digna, que trocaram as suas aldeias pelas cidades para poder comer e dar uma vida melhor aos seus filhos. Onde há muita solidariedade entre vizinhos e acolhimento, mas também problemas causados pelo álcool, pela violência doméstica e pela desagregação de muitas famílias.

Em Moçambique colaboramos na educação dos jovens, rapazes e raparigas, que saindo das suas comunidades do interior, esperam poder formar-se para reerguer o país. Precisam de escolas que lhes dêem esta formação profissional e internatos que lhes permitam viver durante o período escolar, dado que as suas casas ficam muito distantes. Também acompanhar estes jovens e as comunidades cristãs faz parte da nossa chamada.

Por outro lado, estamos presentes no Brasil, na luta contra as grandes companhias extractivitas que expulsam as comunidades das suas terras, envenenam os rios e o ar, interrompem as comunicações ou isolam-nas com os seus comboios intermináveis que extraem os minérios da zona sem se preocuparem com o ambiente ou com o bem-estar das pessoas.

Além disso, em muitos países europeus estamos envolvidos no acolhimento aos imigrantes. Procuramos restituir quanto recebemos quando também nós éramos estrangeiros. Somos chamados a receber quantos fogem da miséria e das guerras, quantos estão à procura de um futuro melhor para as suas famílias e que à sua chegada se encontram perante muros não só de cimento e redes metálicas, mas também de medo e de incompreensão por parte da população. Fazer de ponte com uma população que continua a ser hospitaleira e solidária, presentes nas organizações socais e eclesiais que se mobilizam para acolher e integrar os novos vizinhos. Do acolhimento na praia até à ajuda na língua, procura de um trabalho, de uma casa, nos trâmites administrativos, ou a reconhecer a riqueza que nos trazem e o valor acrescentado que representam para a nova sociedade. Valorizando o que são e as suas culturas e sendo referentes para estas últimas num mundo que nem sempre as compreende.

Quando a sociedade desaba e o ser humano é destroçado não sabemos o que fazer com estas pessoas. A reclusão na prisão é a solução que demos enquanto sociedade. Mas estas prisões muitas vezes tornam-se escola de delinquência e não de reabilitação, como deveriam. Entre estas encontram-se a APAC que nasceram no Brasil e que pouco a pouco se estão a difundir. Um sistema de reclusão onde a pessoa que chega é considerada como alguém a recuperar e não um detido, mas é chamada com o seu nome e não com um número. Protagonista da sua vida, é ajudada a compreender o seu erro e a necessidade de pedir perdão e a reinserir-se como membro activo na sociedade. Um método onde a comunidade opera uma mudança e cria pontes recuperando os seus filhos e as suas filhas que um dia cometeram um erro; onde estas pessoas a recuperar têm as chaves das portas e pouco a pouco juntamente com os outros compreendem a dignidade de ser filhos de Deus, o arrependimento e o seu valor como pessoas para a sociedade.

O modo como se vive nos países com maiores recursos está a esgotar um planeta finito. As relações comerciais internacionais estão a empobrecer muitos em benefício de poucos… promover um novo estilo de vida é fundamental para mudar os paradigmas e os valores que se mostram como os únicos válidos para um êxito social e para a felicidade. Numa sociedade em que a posse e o consumo prevalecem sobre o ser, á preciso propor novos estilos de vida. Também nisto estamos envolvidos na Europa: propondo novos estilos de vida, de empenho, de responsabilidade no consumo, na economia, etc.

Poderemos assim prosseguir com actividades ligadas a uma educação empenhada com os excluídos das periferias das nossas cidades, na atenção aos doentes mostrando o rosto de Deus que os acompanha e a mão de Deus que cuida, na atenção aos sem-abrigo, às pessoas com dependências, etc.

Como missionários, somos e devemos tornar todos conscientes da realidade de um mundo globalizado que requer uma acção conjunta, uma nova tomada de posição. Por isso, cada nossa pequena acção, todos os nossos grãozinhos de areia dão forma a pequenas montanhas onde subir, ver e sonhar um mundo diferente.

Subir com a gente com quem vivemos todos os dias. Chamados em particular a quantos vivem submersos sem possibilidade de ver um horizonte, de sair das próprias dificuldades, somos chamados a levantar a cabeça e a olhar em frente, a animar e acompanhar estas comunidades. Somos chamados a estar ali aonde ninguém quer ir.

Todos chamados a lutar de maneira global pelos problemas que são globais, a unir-nos e a ser promotores de redes de solidariedade nesta humanidade que habita a casa comum, que demonstra cada dia ser mais pequena.

E no centro, colocar Jesus, a pessoa que mudou a nossa vida. Deus é um direito de cada homem e de cada mulher. Sentimo-nos responsáveis por dar a conhecer a Boa Nova, por apresentar um Deus vivo que está no meio de nós, que caminha connosco, que, como nos mostrou Jesus de Nazaré, não nos abandona e nos acompanha sempre. Dentro de cada pessoa, no mais necessitado, na comunidade, Deus espera cada um de nós, para transformar a nossa vida, enchê-la de felicidade, de uma felicidade profunda. Deus espera-nos para nos dar a água viva, aquela água que sacia a sede do ser humano.

Que o Senhor nos dê as forças para poder estar sempre presentes e acompanhar, ser um instrumento que leva as pessoas a encontrá-lo e nos mantenha sempre ao seu lado no caminho.

LMC

Alberto de la Portilla, LMC

Carta do Papa Francisco aos Movimentos Populares

Papa
Papa

Aos irmãos e irmãs
dos movimentos e organizações populares.

Queridos amigos,

Lembro-me com frequência de nossos encontros: dois no Vaticano e um em Santa Cruz de la Sierra e confesso que essa “memória” me faz bem, me aproxima de vocês, me faz repensar em tantos diálogos durante esses encontros e em tantas esperanças que ali nasceram e cresceram e muitos delas se tornaram realidade. Agora, no meio dessa pandemia, eu me lembro de vocês de uma maneira especial e quero estar perto de vocês.

Nestes dias de tanta angústia e dificuldade, muitos se referiram à pandemia que sofremos com metáforas bélicas. Se a luta contra o COVID-19 é uma guerra, vocês são um verdadeiro exército invisível que luta nas trincheiras mais perigosas. Um exército sem outra arma senão a solidariedade, a esperança e o sentido da comunidade que reverdecem nos dias de hoje em que ninguém se salva sozinho. Vocês são para mim, como lhes disse em nossas reuniões, verdadeiros poetas sociais, que desde as periferias esquecidas criam soluções dignas para os problemas mais prementes dos excluídos.

Eu sei que muitas vezes vocês não são reconhecidos adequadamente porque, para este sistema, são verdadeiramente invisíveis. As soluções do mercado não chegam às periferias e a presença protetora do Estado é escassa. Nem vocês têm os recursos para realizar as funções próprias do Estado. Vocês são vistos com suspeita por superarem a mera filantropia por meio da organização comunitária ou por reivindicarem seus direitos, em vez de ficarem resignados à espera de ver se alguma migalha cai daqueles que detêm o poder econômico. Muitas vezes mastigam raiva e impotência quando veem as desigualdades que persistem mesmo quando terminam todas as desculpas para sustentar privilégios. No entanto, vocês não se encerram na denúncia: arregaçam as mangas e continuam a trabalhar para suas famílias, seus bairros, para o bem comum. Essa atitude de vocês me ajuda, questiona e ensina muito.

Penso nas pessoas, especialmente mulheres, que multiplicam o pão nos refeitórios comunitários, cozinhando com duas cebolas e um pacote de arroz um delicioso guisado para centenas de crianças, penso nos doentes, penso nos idosos. Elas nunca aparecem na mídia convencional. Tampouco os camponeses e os agricultores familiares, que continuam a trabalhar para produzir alimentos saudáveis, sem destruir a natureza, sem monopolizá-los ou especular com a necessidade do povo. Quero que saibam que nosso Pai Celestial olha para vocês, vos valoriza, reconhece e fortalece em sua escolha.

Quão difícil é ficar em casa para quem mora em uma pequena casa precária ou para quem de fato não tem teto. Quão difícil é para os migrantes, as pessoas privadas de liberdade ou para aqueles que realizam um processo de cura para dependências. Vocês estão lá, colocando seu corpo ao lado deles, para tornar as coisas menos difíceis, menos dolorosas. Congratulo a vocês e agradeço do fundo do meu coração. Espero que os governos entendam que os paradigmas tecnocráticos (sejam centrados no estado, sejam centrados no mercado) não são suficientes para enfrentar esta crise e nem os outros problemas importantes da humanidade. Agora, mais do que nunca, são as pessoas, as comunidades, os povos que devem estar no centro, unidos para curar, cuidar, compartilhar.

Eu sei que vocês foram excluídos dos benefícios da globalização. Não desfrutam daqueles prazeres superficiais que anestesiam tantas consciências. Apesar disso, vocês sempre sofrem os danos dessa globalização. Os males que afligem a todos, a vocês atingem duplamente. Muitos de vocês vivem o dia a dia sem nenhum tipo de garantias legais que os protejam. Os vendedores ambulantes, os recicladores, os feirantes, os pequenos agricultores, os pedreiros, as costureiras, os que realizam diferentes tarefas de cuidado. Vocês, trabalhadores informais, independentes ou da economia popular, não têm um salário estável para resistir a esse momento … e as quarentenas são insuportáveis para vocês. Talvez seja a hora de pensar em um salário universal que reconheça e dignifique as tarefas nobres e insubstituíveis que vocês realizam; capaz de garantir e tornar realidade esse slogan tão humano e cristão: nenhum trabalhador sem direitos.

Também gostaria de convidá-los a pensar no “depois”, porque esta tempestade vai acabar e suas sérias consequências já estão sendo sentidas. Vocês não são uns improvisados, têm a cultura, a metodologia, mas principalmente a sabedoria que é amassada com o fermento de sentir a dor do outro como sua. Quero que pensemos no projeto de desenvolvimento humano integral que ansiamos, focado no protagonismo dos Povos em toda a sua diversidade e no acesso universal aos três T que vocês defendem: terra e comida, teto e trabalho. Espero que esse momento de perigo nos tire do piloto automático, sacuda nossas consciências adormecidas e permita uma conversão humanística e ecológica que termine com a idolatria do dinheiro e coloque a dignidade e a vida no centro. Nossa civilização, tão competitiva e individualista, com suas taxas frenéticas de produção e consumo, seus luxos excessivos e lucros desmedidos para poucos, precisa mudar, se repensar, se regenerar. Vocês são construtores indispensáveis dessa mudança urgente; além disso, vocês possuem uma voz autorizada para testemunhar que isso é possível. Vocês conhecem crises e privações … que com modéstia, dignidade, comprometimento, esforço e solidariedade, conseguem transformar em uma promessa de vida para suas famílias e comunidades.

Mantenham vossa luta e cuidem-se como irmãos. Oro por vocês, oro com vocês e quero pedir ao nosso Deus Pai que os abençoe, encha vocês com o seu amor e os defenda ao longo do caminho, dando-lhes a força que nos mantém vivos e não desaponta: a esperança. Por favor, orem por mim que eu também preciso.

Fraternalmente,

Francisco

Cidade do Vaticano, 12 de abril de 2020, Domingo de Páscoa.