Leigos Missionários Combonianos

Laicado e Ministerialidade

Laicado
Laicado

Laicado e ministerialidade

Tentaremos fazer uma reflexão sobre a ministerialidade de uma perspectiva laical, em particular do ponto de vista da vocação missionária comboniana. Mas antes de adentrar-nos nestes ministérios e serviços do ponto de vista da fé, creio que seja importante enquadrar o assunto.

A nossa vida dá uma reviravolta quando fazemos um encontro pessoal com Jesus de Nazaré. Partilhamos esta sociedade com muitos homens e mulheres de boa vontade. Cada um, com princípios e valores que orientam as suas acções e as suas escolhas de vida. Mas para nós existe um «antes de» e um «depois de» ter conhecido Jesus. Como os primeiros discípulos, um dia encontrámos Jesus no nosso caminho. O nosso coração estremeceu e os nossos lábios perguntaram «Onde moras?». E a sua resposta foi «vem e vê». A partir daquele momento a nossa vida mudou.

São muitos os caminhos através dos quais chegamos a este encontro: para muitos foi graças às nossas famílias, às nossas comunidades cristãs, aos nossos amigos, a circunstâncias da vida que nos aconteceram… indubitavelmente a casuística é muito vasta. Mas o que é realmente determinante, é a resposta dada, a partir da liberdade, e as consequências desta resposta em cada uma das nossas vidas. A resposta é livre, ninguém nos obriga a dá-la, é uma graça que recebemos e, consequentemente, o reconhecimento de uma nova vida.

O leigo acima de tudo é um seguidor de Cristo. Não se trata de seguir uma ideologia nem simplesmente de lutar por causas justas que contribuam para uma nova humanidade mais justa e digna para todos, nem significa seguir todos os preceitos da religião que podem ajudar-nos na nossa relação com Deus. Ser cristãos significa antes de mais seguir Jesus, sair da nossa zona de conforto e pôr-nos a caminho. Pegar no necessário para caminhar ligeiros e estar sempre abertos e disponíveis neste avançar. Jesus nos mostrará, ao longo do caminho, qual é a nossa parte de responsabilidade no anúncio e construção do Reino.

Nós dizemos estar em constante discernimento que não é um estado de diálogo constante com o Senhor. É verdade que existem momentos especiais de discernimento na vida de cada pessoa. São aqueles momentos que dizem respeito à nossa vocação principal, como no caso do matrimónio ou da vocação à qual nos sentimos chamados, como a vocação missionária, e também o género de profissão através da qual queremos ou sentimos poder servir os outros, escolhendo um certo tipo de estudos ou outro, um dado trabalho ou outro. É fundamental para a vida de toda a pessoa compreender esta chamada a ser enfermeiro, médico, professor, dirigente de uma empresa, advogado, educador, trabalhar no campo social, ou ser político, artesão, etc.

Momentos vitais que na nossa adolescência, juventude e idade adulta se apresentam de maneira significativa. Mas, para lá destes momentos, que nos manterão no caminho nos momentos difíceis, neste caminhar queremos manter-nos em escuta. Não queremos acomodar-nos. Na vida apresentam-se continuamente novos desafios e novas chamadas da parte de Jesus. Para nós, como missionários, ter a mala pronta é algo que faz parte da nossa vocação. Somos chamados a acompanhar as pessoas, as comunidades durante um determinado período, para depois ir embora, porque o ir embora é parte essencial. Sair ou continuar a crescer. Não permanecemos sempre iguais durante anos porque reconhecemos que as necessidades mudam. Somos chamados a deixar a nossa terra e a viajar para outros países, para outras culturas; somos chamados a desenvolver novos serviços, a regressar aos nossos lugares de origem, a assumir novos empenhos: tudo isto faz parte da nossa vocação. Em cada chamada, em cada nova mudança, devemos compreender quais são os planos do Senhor para nós. Porque é que nos pede para ir para outro continente ou para regressar ao nosso lugar de origem quando estávamos a fazer tão bem junto daquela gente, quando inclusive parecíamos tão necessários naquele lugar, a vida leva-nos a mudar de lugar, a começar de novo…

Porque é que quando nos parece ter chegado a um porto definitivo, há alguma coisa dentro de nós que nos interroga, nos inquieta? É o Senhor que nos fala. Com Ele temos uma relação de amizade que nos ajuda a crescer. Como amigos partilhamos a vida e os nossos projectos que a atravessam. Com momentos de maior estabilidade, mas também com momentos de novos desafios. Não viemos para descansar nesta terra, mas para fazer frutificar a vida e para permitir e lutar a fim de que também outros possam usufruir dela.

Nós respondemos a esta chamada não só de maneira individual, mas também a partir de dentro de uma comunidade. Não caminhamos sozinhos. Isto é parte da nossa vocação cristã, a pertença à Igreja, tal como nos sentimos parte também de toda a humanidade. E como parte desta Igreja sentimo-nos chamados a um serviço comum. Como Leigos Missionários Combonianos (LMC) sentimos esta pertença à Igreja de Jesus. E sentimos que esta vocação específica que recebemos é uma vocação e uma responsabilidade comunitária. Temos uma chamada pessoal, mas também uma chamada como comunidade e comunidade de comunidades. Reconhecemos a Igreja como sacramento universal de salvação, cada um com a sua especificidade, dons e carisma para o anúncio e a construção do Reino.

Jesus chama os seus discípulos a viver, a percorrer o caminho em comunidade. Sabemos que só com a ajuda de Jesus podemos caminhar e como comunidade temos necessidade desta espiritualidade profunda que nos une a Jesus, ao Pai e ao Espírito. Um caminho onde a oração, a vida de fé e a comunidade se tornam alimento e referência para a vida do LMC.

A centralidade da missão em Comboni. A Igreja ao serviço da missão

Comboni tinha bem clara a centralidade da missão na sua vocação e a necessidade desta na Igreja. Perante as necessidades dos nossos irmãos e irmãs mais necessitados somos chamados a dar uma resposta. E esta resposta é de tal modo necessária e complexa que não somos chamados a dá-la individualmente, mas como Igreja. Todos e cada um de nós cristãos somos chamados a responder a esta chamada. Independentemente do nosso estado eclesial, cada um de nós deve dar uma resposta de fé. Jesus chama cada um a caminhar. E é pela complexidade das necessidades existentes que o Espírito suscita no mundo e na sua Igreja vocações diferentes, carismas diferentes que dêm o seu contributo a esta realidade. Identificar a Igreja com o clero ou com os religiosos e as religiosas significa não compreender Jesus, significa não escutar o Espírito.

A actividade e a chamada ao sacerdócio ou à vida religiosa nos seus numerosos aspectos é fundamental para o mundo, mas não mais do que o empenho de todos e de cada um dos leigos. A Igreja não tem só uma responsabilidade ligada à religiosidade e espiritualidade das pessoas. Temos uma responsabilidade social, familiar, ambiental, educativa, sanitária, etc. com todo o mundo.

As coisas do dia a dia são as coisas de Deus. As pequenas coisas são as coisas de Deus. A atenção a cada pessoa no concreto e nas necessidades globais são responsabilidade dos seguidores de Jesus. E em todas estas coisas, o papel do laicado é fundamental, do homem e da mulher, em campo material e espiritual… assim o entendeu Comboni e assim o entendemos nós também.

Comboni

O leigo no mundo

Nesta chamada global que recebemos, a Igreja apresenta-se como comunidade de referência. É nutrimento para o serviço. Lugar onde retomar as forças, onde nutrir-se de maneira privilegiada mesmo se não única.

Como leigos somos chamados a fazer nascer raízes que estabilizem o terreno e o enriqueçam, somos chamados a criar redes de solidariedade e de relação que articulem a sociedade, através da família, das pequenas comunidades de condomínio, de bairro, entidades sociais, empresas… somos grandes criadores de redes de relação, colaboração e trabalho. Vivemos envolvidos em todas estas redes e somos chamados a animá-las, a dar-lhes uma espiritualidade para que estejam ao serviço das pessoas, sobretudo dos mais fracos. Somos chamados a incluir todas as pessoas. O nosso olhar deve concentrar-se nos mais pobres e abandonados de que falava Comboni, nos excluídos desta sociedade, deve ser um olhar que nos impele a estar nas periferias porque é a partir de baixo que as coisas se vêem de maneira diferente. Não podemos adaptar-nos a uma sociedade onde não todos têm uma vida digna. Uma sociedade onde se premeia o ter e não o ser e o consumo que está a devastar um planeta finito que grita e reclama a nossa responsabilidade global.

Esta visão que deve interrogar a nossa vida pede-nos acções concretas.

A chamada do leigo é uma chamada ao serviço da humanidade. Uma chamada que para alguns será de serviço no interior da nossa Igreja. Não podemos pensar que o bom leigo seja aquele que ajuda na paróquia e perder de vista a nossa vocação de serviço ao mundo. Alguns serviços internos são necessários, mas a Igreja é chamada a sair.  A ir com Jesus para o caminho, a ir de terra em terra, de casa em casa, a ajudar nas pequenas e grandes coisas. Somos chamados a ser sal que dá sabor, fermento na massa… chamados a estar no mundo e a contribuir de maneira significativa. Não podemos permanecer em casa onde nos sentimos bem, onde nos compreendemos uns aos outros. Somos chamados a sair. A Igreja não nasce para si mesma, mas para ser comunidade de crentes que segue Jesus e serve os mais necessitados. Por isso sentimo-nos chamados a ser de ajuda no crescimento das comunidades humanas (também as cristãs).

Qual é a resposta que estamos a dar a esta chamada como LMC?

Actualmente há uma ampla reflexão em toda a Igreja sobre o específico missionário. Sobre quais são e deveriam ser os nossos serviços enquanto missionários, os nossos ministérios específicos. Perdeu-se já a referencialidade geográfica da missão, a referência entre um Norte rico e um Sul a desenvolver, onde as desigualdades e as dificuldades estão presentes em todos os países, apesar de em alguns continuar a concentrar-se a maior parte das riquezas e das possibilidades enquanto noutros as dificuldades são muito mais graves… De facto, a miséria alastra entre os sem abrigo nos chamados países ricos, as migrações forçadas por causa da pobreza, das guerras, das perseguições por motivos diversos, as alterações climáticas e outros factores estão a fazer com que um fenómeno desde sempre presente na humanidade se esteja a agravar. A pandemia do COVID-19 recorda-nos a globalidade da nossa humanidade acima de barreiras e fronteiras. Atinge-nos a todos e a todas do mesmo modo. Até agora o dinheiro parecia ser o único capaz de viajar sem passaporte, mas agora parece que possa fazê-lo também o vírus.

Só num mundo justo todos poderemos viver em paz e prosperidade. As desigualdades salariais, os conflitos, o consumo desatinado ao ponto de derreter os gelos dos polos e assim por diante acabam por influenciar e ter consequências sobre toda a humanidade. As barreiras e a polícia, que estejam nas fronteiras ou nas casas ou nas zonas urbanas de quem tem mais, não obterão um mundo melhor para todos nem para os que aí se refugiam.

Perante tudo isto, o debate e a reflexão sobre o específico do laicado missionário nesta nova época é claro.  Não terei a pretensão de entrar no assunto de maneira teórica. Apresentar-vos-ei simplesmente algumas das actividades em que estamos presentes como leigos para dar uma resposta à chamada recebida.

É esta a nossa ministerialidade, o serviço a que nos sentimos chamados. Uma resposta de vida, não teórica, que estamos a dar. Não me alongarei. Indicarei só alguns exemplos que possam clarificar; tantos outros permanecerão no anonimato… não por acaso somos chamados a ser pedras escondidas.

Temos amigos e amigas que trabalham com os pigmeus e com o resto da população na República Centro-africana, um país onde estamos há mais de 25 anos. No meio de quantos são considerados como servos da maioria da população; fazendo de ponte de inclusão ou tomando a nosso cargo a responsabilidade de uma rede de escolas primárias num país que está a atravessar vários golpes de estado e se encontra desde há anos numa situação de guerra que não permite ao Estado fornecer estes serviços.

No Perú acompanhamos a gente na periferia das grandes cidades. Nos estabelecimentos abusivos onde quem vem do campo arranca um pedaço de terra à cidade para viver, sem luz, sem água nem esgotos. Poucas famílias que lutam por uma vida digna, que trocaram as suas aldeias pelas cidades para poder comer e dar uma vida melhor aos seus filhos. Onde há muita solidariedade entre vizinhos e acolhimento, mas também problemas causados pelo álcool, pela violência doméstica e pela desagregação de muitas famílias.

Em Moçambique colaboramos na educação dos jovens, rapazes e raparigas, que saindo das suas comunidades do interior, esperam poder formar-se para reerguer o país. Precisam de escolas que lhes dêem esta formação profissional e internatos que lhes permitam viver durante o período escolar, dado que as suas casas ficam muito distantes. Também acompanhar estes jovens e as comunidades cristãs faz parte da nossa chamada.

Por outro lado, estamos presentes no Brasil, na luta contra as grandes companhias extractivitas que expulsam as comunidades das suas terras, envenenam os rios e o ar, interrompem as comunicações ou isolam-nas com os seus comboios intermináveis que extraem os minérios da zona sem se preocuparem com o ambiente ou com o bem-estar das pessoas.

Além disso, em muitos países europeus estamos envolvidos no acolhimento aos imigrantes. Procuramos restituir quanto recebemos quando também nós éramos estrangeiros. Somos chamados a receber quantos fogem da miséria e das guerras, quantos estão à procura de um futuro melhor para as suas famílias e que à sua chegada se encontram perante muros não só de cimento e redes metálicas, mas também de medo e de incompreensão por parte da população. Fazer de ponte com uma população que continua a ser hospitaleira e solidária, presentes nas organizações socais e eclesiais que se mobilizam para acolher e integrar os novos vizinhos. Do acolhimento na praia até à ajuda na língua, procura de um trabalho, de uma casa, nos trâmites administrativos, ou a reconhecer a riqueza que nos trazem e o valor acrescentado que representam para a nova sociedade. Valorizando o que são e as suas culturas e sendo referentes para estas últimas num mundo que nem sempre as compreende.

Quando a sociedade desaba e o ser humano é destroçado não sabemos o que fazer com estas pessoas. A reclusão na prisão é a solução que demos enquanto sociedade. Mas estas prisões muitas vezes tornam-se escola de delinquência e não de reabilitação, como deveriam. Entre estas encontram-se a APAC que nasceram no Brasil e que pouco a pouco se estão a difundir. Um sistema de reclusão onde a pessoa que chega é considerada como alguém a recuperar e não um detido, mas é chamada com o seu nome e não com um número. Protagonista da sua vida, é ajudada a compreender o seu erro e a necessidade de pedir perdão e a reinserir-se como membro activo na sociedade. Um método onde a comunidade opera uma mudança e cria pontes recuperando os seus filhos e as suas filhas que um dia cometeram um erro; onde estas pessoas a recuperar têm as chaves das portas e pouco a pouco juntamente com os outros compreendem a dignidade de ser filhos de Deus, o arrependimento e o seu valor como pessoas para a sociedade.

O modo como se vive nos países com maiores recursos está a esgotar um planeta finito. As relações comerciais internacionais estão a empobrecer muitos em benefício de poucos… promover um novo estilo de vida é fundamental para mudar os paradigmas e os valores que se mostram como os únicos válidos para um êxito social e para a felicidade. Numa sociedade em que a posse e o consumo prevalecem sobre o ser, á preciso propor novos estilos de vida. Também nisto estamos envolvidos na Europa: propondo novos estilos de vida, de empenho, de responsabilidade no consumo, na economia, etc.

Poderemos assim prosseguir com actividades ligadas a uma educação empenhada com os excluídos das periferias das nossas cidades, na atenção aos doentes mostrando o rosto de Deus que os acompanha e a mão de Deus que cuida, na atenção aos sem-abrigo, às pessoas com dependências, etc.

Como missionários, somos e devemos tornar todos conscientes da realidade de um mundo globalizado que requer uma acção conjunta, uma nova tomada de posição. Por isso, cada nossa pequena acção, todos os nossos grãozinhos de areia dão forma a pequenas montanhas onde subir, ver e sonhar um mundo diferente.

Subir com a gente com quem vivemos todos os dias. Chamados em particular a quantos vivem submersos sem possibilidade de ver um horizonte, de sair das próprias dificuldades, somos chamados a levantar a cabeça e a olhar em frente, a animar e acompanhar estas comunidades. Somos chamados a estar ali aonde ninguém quer ir.

Todos chamados a lutar de maneira global pelos problemas que são globais, a unir-nos e a ser promotores de redes de solidariedade nesta humanidade que habita a casa comum, que demonstra cada dia ser mais pequena.

E no centro, colocar Jesus, a pessoa que mudou a nossa vida. Deus é um direito de cada homem e de cada mulher. Sentimo-nos responsáveis por dar a conhecer a Boa Nova, por apresentar um Deus vivo que está no meio de nós, que caminha connosco, que, como nos mostrou Jesus de Nazaré, não nos abandona e nos acompanha sempre. Dentro de cada pessoa, no mais necessitado, na comunidade, Deus espera cada um de nós, para transformar a nossa vida, enchê-la de felicidade, de uma felicidade profunda. Deus espera-nos para nos dar a água viva, aquela água que sacia a sede do ser humano.

Que o Senhor nos dê as forças para poder estar sempre presentes e acompanhar, ser um instrumento que leva as pessoas a encontrá-lo e nos mantenha sempre ao seu lado no caminho.

LMC

Alberto de la Portilla, LMC

O XVIII Capítulo Geral e a ministerialidade

Hno. Alberto Parise
Hno. Alberto Parise

Na visão da Evangelli Gaudium (EG), a missão da Igreja e todos os ministérios no seu interior são orientados a construir o Reino de Deus, esforçando-se por criar espaços no nosso mundo em que todas as pessoas, especialmente os pobres e os excluídos, possam experimentar a salvação de Jesus Ressuscitado. Os ministérios, portanto, assumem uma importância crucial enquanto lugar de encontro entre humanidade, Palavra e Espírito na história. (Ir. Alberto Parise, na foto)

O XVIII CAPÍTULO GERAL E A MINISTERIALIDADE

Ir. Alberto Parise

Há momentos na história que marcam passagens epocais ou transições de um sistema sociocultural a um outro, que é inédito, marcando uma importante descontinuidade. O tempo em que Comboni viveu foi certamente um destes momentos históricos. Era o tempo da revolução industrial, fruto de um grande salto que ciência e tecnologia estavam a operar, também a nível económico e político. A Igreja encontrava-se na defensiva, perante o chamado «modernismo» que entendia como uma ameaça. Era uma Igreja assediada, politicamente e culturalmente; e na sua resistência, corria o risco da autorreferencialidade. E, todavia, precisamente naquele tempo tão difícil, experimentou um grande renascimento: entre as contradições e os males sociais que emergiam com o novo sistema económico capitalista industrial, emergiu também um ímpeto para o apostolado social, através do serviço de leigos e de um grande número de novos institutos religiosos. O movimento colonial – que respondia a lógicas político-económicas e à ideologia dos estados nacionais em competição – era, por outro lado, acompanhado de um grande interesse cultural pelas explorações, o exótico, o espírito de aventura. Mas houve também o nascimento de um novo movimento missionário em direcção a terras e povos distantes. A Igreja entrava assim numa nova época, com um forte renovamento espiritual – como testemunha a espiritualidade do Sagrado Coração, que marcou aquele tempo – fazendo emergir um novo modelo missionário.

O XVIII Capítulo Geral foi celebrado numa viragem epocal análoga para a Igreja. O discernimento do Capítulo sintonizou-se na leitura de tal viragem que o Papa Francisco tinha feito na Evangelli Gaudium (EG): uma leitura teológica da nova época que abre, na prática pastoral, a um novo ímpeto missionário. Novo, no sentido de superação do paradigma a que estamos habituados: uma missão baseada no modelo geográfico, em que os protagonistas são «corpos especiais» missionários, autênticos pioneiros, cujo papel é fundar Igrejas locais. A realidade da globalização e a devastadora crise socioambiental do nosso tempo – consequência do preponderante modelo de desenvolvimento que é insustentável e que quase nos levou ao ponto de não retorno – requerem uma renovada abordagem de evangelização. De resto, tendo presente tão-somente a nossa realidade comboniana, apercebemo-nos que o modelo do passado já está ultrapassado nos factos. Por exemplo, o esquema de províncias (do norte do mundo) que enviam e províncias (do sul) que recebem missionários não corresponde mais àquilo que está realmente a acontecer. Tal como a ideia de que nos países do sul se faça «evangelização» e nos do norte «animação missionária». Nota-se a urgência da animação missionária, por exemplo, em África e – como depois indicou o Capítulo – da missão na Europa.

A Evangelli Gaudium indica então um novo paradigma de missão. Não mais simplesmente geográfico, mas existencial. A Igreja é chamada a superar a sua auto-referencialidade e a sair em direcção a todas as periferias humanas, onde se sofre a exclusão e se vivem todas as contradições devidas às desigualdades económicas, à injustiça social e ao empobrecimento. Tudo isso não é mais um aspecto disfuncional do sistema económico, mas um requisito sobre o qual este mesmo sistema prospera e se perpetua. A missão torna-se o paradigma de toda a acção pastoral e a Igreja local é o seu sujeito. Qual é então o papel dos institutos missionários? É o de animar as Igrejas locais para que vivam o seu mandato de ser missionárias, Igrejas em saída em direcção às periferias existenciais. Trata-se de caminhos de comunhão, no seio de realidades conotadas por diversidade e pluralismo, construindo juntas uma perspectiva comum, que valorize as diferenças e as «supere», sem as anular, construindo uma unidade a um nível superior. São caminhos caracterizados pela proximidade aos últimos, pelo serviço, pela capacidade de anunciar o Evangelho na essencialidade do kerigma com as palavras e com a vida. O Papa Francisco relança a visão de Igreja do Concílio Vaticano II, como «o sacramento, ou seja, o sinal e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano». No novo mundo plasmado pela revolução digital e pela globalização dos mercados do capitalismo financeiro, a Igreja é chamada a convocar um «povo» que supere as fronteiras de pertença e caminhos em direcção ao Reino de Deus. Então, o testemunho cristão do Ressuscitado será generativo e também a Igreja crescerá: por atracção, não por proselitismo.

Tal como o foi para Comboni no tempo da revolução industrial, assim para nós hoje a época da revolução digital é uma grande oportunidade missionária. Tratando-se de um novo paradigma, o desafio é o de pensar, estruturar-nos e formar-nos consequentemente. O primeiro passo é reconhecer a graça do carisma comboniano, muito actual e talhado à medida para o novo paradigma de missão. Antes de mais, a ideia central da «regeneração da África com a África», uma imagem sintética que relata uma história muito complexa e articulada: há a ideia da geração de um «povo», capaz de construir uma sociedade alternativa, em sintonia com a acção do Espírito. O anúncio do Evangelho ajuda a levar a cumprimento aquelas «sementes do verbo» já presentes nas culturas e na espiritualidade das gentes. Comboni sublinhava também a importância de que esta obra devesse ser «católica», isto é, universal: longe da auto-referencialidade, via-se como parte integrante de um movimento missionário muito maior, muito mais articulado, com diversidade de dons e carismas. Compreendia o seu papel como o de um animador que «manifestou particularmente através de incansáveis esforços para sacudir as consciências dos pastores da Igreja sobre as suas responsabilidades missionárias, para que a hora da África não passasse em vão» (RV 9). Na visão da EG, a missão da Igreja e todos os ministérios no seu interior são orientados a construir o Reino de Deus, esforçando-se por criar espaços no nosso mundo em que todas as pessoas, especialmente os pobres e os excluídos, possam experimentar a salvação de Jesus Ressuscitado.

Os ministérios, portanto, assumem uma importância crucial enquanto lugar de encontro entre humanidade, Palavra e Espírito na história. Um encontro regenerativo, como muito bem tinha compreendido Comboni. Por isso tinha pensado no seu Plano em toda uma série de pequenas universidades teológicas e científicas ao longo das costas do continente africano, para preparar ministros em vários campos que se irradiariam depois para o interior, para fazer suscitar comunidades pelo espírito evangélico, capazes de transformação social, como nos testemunha o modelo de Malbes e de Gezira.

No espírito do Capítulo, a requalificação sobre linhas ministeriais do nosso serviço missionário requer, como tinha intuído Comboni, uma nova «arquitectura» da missão, que sustente e promova:

  • = uma requalificação ministerial do nosso empenho, desenvolvendo participativamente e em comunhão pastorais específicas, segundo as prioridades continentais. No Capítulo, de facto, emergiu que se, por um lado, estamos presentes nestas «fronteiras» da missão, por outro, muitas vezes carecemos de abordagens contextuais aos grupos humanos que acompanhamos;
  • = o ministério colaborativo, ao longo de caminhos de comunhão. Somos ainda sujeitos de práticas e modos de operar individualistas e fragmentados;
  • = o repensar as nossas estruturas, à procura de maior simplicidade, partilha e capacidade de acolhimento, para ser mais próximos às gentes, mais humanos e mais felizes;
  • = a reorganização das circunscrições. O discurso sobre a unificação não tem meramente uma justificação na insuficiência do pessoal, mas sobretudo tem um valor em relação à passagem de um modelo geográfico a um ministerial, que necessita de coligação, trabalho em rede, partilha de recursos e percursos;
  • = a reorganização da formação, para desenvolver as competências necessárias nas várias pastorais específicas.

Em síntese, como atestam os Documentos Capitulares, «cresce a consciência de um novo paradigma de missão que nos impele a reflectir e a reorganizar as actividades sobre linhas ministeriais» (DC 2015, n. 12). Retomando o convite do Papa Francisco (EG 33), o Capítulo indicou o caminho de uma conversão pastoral, abandonando o critério do «sempre se fez assim» e iniciando percursos de acção-reflexão para repensar os objectivos, as estruturas, o estilo e os métodos de evangelização (DC 2015, n. 44.2-3). (Ir. Alberto Parise).

Após um ano nas terras de Gumuz, na Etiópia.

LMC Etiopia
LMC Etiopia

Queridos familiares, amigas e amigos,

Espero que este e-mail vos encontre bem. Espero que toda a família esteja bem.

Graças a Deus estou bem.

Começo a sentir o forte calor, quase sempre de 40 graus que aqui se faz sentir. O calor que não se compara ao mesmo calor que sinto quando visito famílias, brinco com crianças ou trabalho com esta gente maravilhosa. Como dizia São Pedro, “como é bom estar aqui” (Mt 17,4).

Continuo envolvido na Biblioteca. Graças a Deus e à generosidade de algumas pessoas, foi possível comprar mais alguns livros para a Biblioteca. Os estudantes que aparecem podem ter acesso aos livros escolares básicos. Duas senhoras portuguesas, que aqui vieram trouxeram calculadoras e outro material. Muitas vezes procuro ter cadernos escolares e canetas e oferecer àqueles que não têm possibilidades económicas mas que revelam grande interesse. Sempre que solicitam algum livro em específico tentamos comprar. O seu tempo não é como o meu e posso ter dias em que me aparecem 2 ou 3 como ter dias em que me aparecem 20. Mas, como os compreendo. Jovens, com trabalho a fazer no campo, a estudar, com família e alguns com 2 ou 3 filhos, já. Como poderão ter tempo para a Biblioteca. A verdade é que arranjam e quando vêm estudam, há silêncio e isso deixa-me bastante alegre.

LMC Etiopia

Continuo a ter um grupo fiel nas aulas de inglês e de informática. Eles gostam, têm desejo de aprender e eu, não sendo um especialista, tenho muito gosto em ensinar-lhes.

Tenho um grupo de estudo da Bíblia, em inglês, com 4 catequistas. Lemos a Bíblia, explico palavras em inglês, meditamos os textos, por vezes vemos filmes religiosos em inglês. Sinto-me muito feliz com eles.

Costumo ir brincar na escola que ainda alberga famílias refugiadas. Comprámos uma bola e isso é suficiente para reunir os jovens e para desfrutarmos de bons momentos.

Duas vezes por semana, no mínimo, acompanhamos os catequistas nas aldeias, visitamos famílias, brincamos com as crianças. São momentos que nos enchem o coração. Estar com as pessoas é fundamental na vocação missionária.

Com os Missionários Combonianos, com quem vivemos, todos os dias temos missa às 6.30 e todos os sábados fazemos uma hora de adoração eucarística. Às quintas-feiras vamos a casa das Irmãs Missionárias Combonianas, também com elas, temos uma hora de adoração eucarística e jantamos juntos. Às quartas-feiras eu e o David temos oração comunitária.

Apesar de todo este trabalho é desejo dos Leigos Missionários Combonianos, eu e o David (meu companheiro de comunidade) incluídos, iniciar uma nova presença missionária entre o povo Gumuz. Não somos os primeiros LMC na Etiópia mas somos os primeiros a trabalhar e a viver entre os Gumuz.

LMC Etiopia

Assim sendo, estamos a visitar as comunidades, falamos com as pessoas, analisamos a situação concreta de cada vila e das famílias.

Infelizmente o carro que temos não nos permite esse trabalho contínuo. As estradas são péssimas e requerem uma carrinha razoável. Depois de um mês, só agora retomámos a brincar com as crianças das aldeias pois o nosso carro estava no mecânico, o que acontece com muita frequência. Para além de que continuamente estamos a pagar essas despesas. Será necessário comprar um novo carro que nos permita continuar o nosso trabalho.

Para além disso é nossa intenção construir uma casa numa das aldeias, junto das pessoas, e viver com elas. Juntamente com a casa iremos iniciar projectos. Ainda estamos a definir os projectos mas a construção de um jardim de infância para as crianças que passam o dia sozinhas, sem qualquer adulto e de um Lar de estudantes, que permita a alunos irem à escola, quando muitos não podem ir ou fazem 30 quilómetros diários para irem à escola são os projectos que nos parecem mais viáveis, tendo em conta o que já analisámos e ouvimos de jovens e adultos.

Infelizmente para realizar estes projectos será necessário dinheiro. Por isso peço a vossa oração para que possamos realizar a vontade de Deus junto deste povo lindo. Caso saibam de ONG´s que financiam este tipo de projectos, informem-nos, por favor. Toda a ajuda, por mínima que seja, é preciosa para Deus. E como sei que não estou sozinho aqui, tenho a certeza que estais comigo!

As adversidades por vezes aparecem, tais como tifo ou tifóide, mas estou alegre por ter sido enviado para este lugar onde Deus já se encontrava no meio destas pessoas.

Estou quase a completar um ano neste país lindo! Não duvido disso! É um país lindo! Estou feliz! Sinto-me feliz! Vivo feliz! Isso não significa que, não haja sofrimento. Significa que, apesar de todas as contrariedades que aparecem, vale a pena estar aqui, significa que Deus nos fortalece e nos dá os instrumentos necessários para realizar a sua vontade!

Continuo a ter-vos presentes na minha oração, continuo a sentir a vossa amizade bem perto de mim, continuo a aprender que a distância não quebra laços antes os fortalece, recordando-me diariamente o quanto a vossa amizade e amor são importantes para mim.

Beijinhos e abraços deste amigo que muito vos quer,

Pedro Nascimento, LMC Etiópia

O que ficou e o que veio em nós

LMC Peru
LMC Peru

Talvez isto de viver em constantes chegadas e partidas seja a forma mais bonita de Deus mostrar o seu amor para connosco e seja a fórmula secreta do viver no serviço ao outro.

LMC Peru

A missão sempre será assim um encontro de vidas que se cruzam como que por magia, como se tudo estivesse já planeado nas nossas histórias. A missão sempre será a forma mais concreta de ser testemunha viva de um amor que não morre. Renasce e faz renascer.

LMC Peru

Hoje falamo-vos bem junto de vós. Para trás a certeza de que fomos e sempre seremos inteiros quando nos doamos sem interesse sem tempo ou hora, quando descemos de tudo o que fomos construindo ao longo do tempo e voltamos a ser como crianças um mais no meio deles. Somos família onde as gargalhadas parecem não ter fim e as lágrimas por vezes teimam em espreitar. Somos casa onde há sempre espaço para mais um. Sempre seremos. A missão não terminou. Jamais acabará. Porque o amor vence sempre.

LMC Peru

Paula e Neuza, LMC em Peru

Visita à APAC de Santa Luzia

LMC Brasil
LMC Brasil

Tenho a oportunidade de estar visitando uma Associação de Proteção e Assistência aos Condenados, APAC em Santa Luzia, município de Minas Gerais, que basicamente é um centro de detenção, mas não qualquer centro de detenção. Acaso tem privilégios? Não. Acaso tem muito investimento de ricos e poderosos? Não. É um centro embasado na proposta do Dr. Mario Ottoboni: “Ninguém é irrecuperável”. Isso é Evangelho puro.

Já na primeira impressão dá para perceber muita coisa diferente: um dos detentos é o porteiro dum centro de detenção com 120 “criminosos”. Ele tem a chave da entrada principal e da entrada ao centro dos regimes fechado e semiaberto. Agora, depois de entrar, parece que esses “criminosos” têm um rosto diferente entre muitas coisas: paz, alegria, bondade, arrependimento, caridade, desejos profundos e sinceros de recuperação.

Aqui ninguém é criminoso, todos são RECUPERANDOS, palavra tão precisa, acertada e necessária como primeiro passo para querer ajudar a que aquele que algum dia errou, não volte mais aos mesmos lugares. Joao 8, 11 Res­pondeu ela: “Ninguém, Senhor”. Disse-lhe então Jesus: “Nem eu te condeno. Vai e não tornes a pecar”.”

Com certeza há um método, o método APAC, para trabalhar seriamente na inserção do recuperando na sociedade.

Pela graça de Deus, junto com Alejo, LMC há mais de 20 anos, ajudamos num projeto relâmpago de interpretação de textos em espanhol, para que alguns detentos possam fazer a prova do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) e fazer faculdade desde a APAC. Por enquanto continuam os planejamentos para trabalhar todo o ano 2020 com projetos de maior alcance humano e social.

Estar no meio de homens que puderam ter feito qualquer barbárie, mas que querem mudar de vida, alguns deles sem educação formal, procurando todos os dias formas de estudar, trabalhar, pintar, se formar em algum ofício, é muito valioso e mais que valioso é só pelo poder e força do Espírito Santo e da misericórdia de Deus, que nunca é merecida, mas sempre incondicional, num clima de normas muito estritas, junto com a família do detento e a sociedade do lugar.

Agradeço a Deus pela oportunidade de poder abraçar e ver nos olhos daqueles homens, que ao mesmo tempo estão agradecidos, sempre a alegria por chegarmos mais uma vez a visitá-los. Se Deus acredita na humanidade, quem somos nós para não acreditar?

Alejandro, LMC