Leigos Missionários Combonianos

Edição alemã dos Escritos (Schriften) de São Daniel Comboni

Escritos Comboni en Alemán

Foi um parto particularmente difícil, mas valeu a pena. O último dos filhos de uma família torna-se, às vezes, o filho predilecto de todos. Assim, por ocasião da festa de São Daniel Comboni, celebrada a 10 de Outubro de 2017, os seus escritos e as suas cartas surgem publicados também em alemão. Esta obra, publicada em dois volumes, foi apresentada aos confrades e amigos, durante o Simpósio Missionário de 7 e 8 de Outubro de 2017, em Ellwangen, na Alemanha. Os superiores provinciais ou os confrades que desejarem um exemplar destes Escritos, devem dirigir-se ao P. Anton Schneider, vice-provincial.

Um agradecimento muito especial a todos os que contribuíram e trabalharam incansavelmente para que esta edição se tornasse uma realidade e, em particular, aos padres Georg Klose e Alois Eder, pela tradução, e à Sra. Andrea Fuchs e ao P. Anton Schneider pela redacção final.

Esperamos que este esforço da DSP produza frutos abundantes, isto é, que lendo e meditando as cartas de Comboni, a sua figura se torne mais viva e presente em cada um de nós e entre nós, e se fortaleça, deste modo, a nossa identidade comboniana.

Escritos Comboni en Alemán

Na foto, desde a esquerda: P. Georg Klose, P. Alois Eder e P. Karl Peinhopf, superior provincial da Província de Língua Alemã (Deutschsprachige Provinz – DSP).

comboni.org

(Re)Viver um sonho

LMC Portugal“Pelo sonho é que vamos”, escreveu Sebastião da Gama. O sonho comanda muitas vezes a alma de uma pessoa. Consegue levar-nos a sítios que tanto desejamos e que nem sempre conseguimos alcançar de verdade. Carapira, desde 2015, que era um sonho para mim. Regressar a um sítio onde fui tão feliz, rever rostos conhecidos, pessoas que me tocaram profundamente era algo que não imaginava acontecer. Mas, com a graça de Deus, o sonho realizou-se e a alegria de viver a missão que Deus me confiou em terras moçambicanas encheu de novo o meu coração de profunda gratidão a Deus e a todos os que rezaram e trabalharam para que o sonho se tornasse realidade e pudesse ser vivido de novo.

Diferentemente de 2015, em que fui pela primeira vez a Moçambique, este ano a tarefa que Deus me confiou foi a de ser responsável por sete jovens do Grupo Fé e Missão: Ana, Filipe, Inês, Jorge, Mónica, Ruben e Sofia. A minha missão principal foi a de garantir que estes jovens teriam um mês repleto de vivências ricas e profundas com Deus, com o povo que Deus nos deu a conhecer, com eles próprios e com todos os missionários que com o seu exemplo nos viriam a ensinar a Missão.

LMC Portugal

Este ano, a minha maior alegria foi sentir o coração cheio destes jovens, vê-los felizes por se entregarem sem reservas a todas as pessoas que se cruzaram connosco e a todos os trabalhos que nos foram solicitados. Sinto-me grato, uma vez mais, a Deus, pelos jovens que Ele enviou a Carapira, pela sua generosidade e bondade, pela sua alegria e entusiasmo, por tudo o que aprendi com eles e pelo tanto que deram em tão pouco tempo.

Apesar de só chegarmos a Carapira no dia 19 de Agosto, considero que a longa viagem que fizemos foi muito importante, porque nos permitiu criar ainda mais empatia entre todos e reflectir um pouco sobre a missão. Assim, ao longo da viagem tivemos algumas catequeses sobre o voluntariado e missão, a terra sagrada que seria para nós Moçambique, o outro como “sagrado” e “mistério” e a alegria do encontro.

Muito temos a agradecer a todos os missionários que de coração aberto nos receberam e acolheram em suas casas, que abdicaram do tempo precioso em missão e pararam para estar connosco, para partilharem histórias de vida maravilhosas e para nos levarem a conhecer sítios maravilhosos. Para mim, os lugares mais lindos foram o bairro de Carapira, as comunidades que visitámos e todos os outros lugares onde tivemos oportunidade de estar com pessoas. Sem dúvida que o mais bonito da missão são as pessoas. É por causa das pessoas que Deus nos convida a partir. A missão são rostos: em primeiro lugar, o rosto de Cristo, sedento de amor por todos e, em especial, pelos mais abandonados; depois, o rosto de todas as pessoas com quem nos cruzamos e partilhamos aquilo que somos. Por vezes partilhámos apenas a nossa presença, o estar, como o fizemos com as visitas aos doentes. A verdade é que essa partilha tão simples levou alguns a dizerem aos jovens que estes foram uma bênção de Deus para eles, os doentes. E os jovens deixaram-se tocar tanto. Eu tive a graça de ir acompanhando os que pretendiam ter alguma conversa sobre o que lhes ia na alma, sobre o caminho interior que iam fazendo e digo-vos que muitas vezes fiquei de coração cheio com as partilhas, com as maravilhas que Deus ia operando no coração de cada um. Só um Deus amor é capaz de realizar as maravilhas que o nosso Deus realizou nestes jovens do Fé e Missão.

No fim, despedi-me de Carapira. A despedida foi serena pois no meu coração senti a alegria de que não disse “Adeus” mas sim “Até já”. Pode até ter sido um “Adeus” a Carapira mas, no meu coração, foi um “Até já” à missão além fronteiras. Queira Deus que assim seja!

LMC Portugal

Termino com um pequeno Magnificat pessoal que escrevi desde Carapira até ao aeroporto de Nampula:

A minha alma glorifica ao Senhor,

Louvo e bendigo a Deus por todas as maravilhas que voltei a viver em Moçambique.

O pouco que sou e dei, o Senhor multiplicou em graças e dons

Transformados em simples gestos de entrega e partilha.

Louvado seja Deus!

A mim e a todo o grupo do Fé e Missão, o Senhor encheu o nosso coração de maravilhas,

Traduzidas num simples “Ehali”, num sorriso ou num simples olhar.

Louvado seja Deus!

Ao contemplar a beleza natural deste lindo jardim que é Moçambique,

Glorifico a Deus por todas as obras da Sua Criação,

Por tanto amor!

Perante os inúmeros sinais da presença de Deus, que vivemos e contemplámos

Só posso dizer: Deus é Grande!

E a sua grandeza manifesta-se em tudo e todos,

Incluindo em mim e na minha fragilidade!

Louvado seja Deus!

 

Pedro Nascimento

 

 

Primeiros dias da Marisa em Moçambique

Marisa Mozambique

Quinta feira, 10 de agosto de 2017

São 5:00 horas da manhã e a agitação dentro do avião sugere que a aterragem em solo moçambicano esteja para breve. Alguns ainda dormem. Está a ser um voo tranquilo, com tempo para tudo: descanso, assistir filmes, impaciência, vontade de esticar as pernas, beliscões – “isto está mesmo a acontecer!”. O senhor que viaja à janela, à minha esquerda, abre a “cortina”. Uau! O dia está a amanhecer, sou uma abençoada: o primeiro, primeiríssimo milagre que testemunho nesta terra é o nascer do Sol. Magnífico. Nada mais vejo senão um quadro pincelado com cores quentes. É impossível ficar estéril a tamanha beleza, aquelas cores enchem-me de alegria e aquecem-me. Fazem-me ter vontade de aterrar agora mesmo.

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Estou em Moçambique! Cheguei a Maputo. Está quente e os cheiros notam-se ainda mais com o calor. As cores contrastam entre si mas o azul da baía parece unir-se ao céu. As pessoas são sorridentes e curiosas. Há alma nova aqui. A vida acontece num ritmo bastante singular.

À minha espera no aeroporto estava o Padre Paulo, Missionário Comboniano. Aguardava-me com uma revista “Audácia”, sorri assim que me apercebi do “código de localização/ identificação” – “menos é mais” e “para bom entendedor meia palavra basta”.

Levou-me até à Casa Provincial. Pelo caminho mostrou-me uma e outra coisa. Passei a manhã com aquela Comunidade de Maputo.

Depois de almoço seguirei para o aeroporto. Se Deus quiser, ao final da tarde estarei em Nampula com a Kasia.

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Estaria mais ou menos a meio da viagem de Maputo para Nampula quando Samuel, de 6 anos, começou a percorrer o avião de um lado para o outro repetidamente. A almofada com que brincava caiu perto do meu lugar. Apanhei-a e estiquei o braço para a devolver.

– English? Abanou a cabeça para a esquerda. Português? Abanou a cabeça para a direita.

– Português, abanei a cabeça para o lado concordante. Rimos e fizemos “mais cinco!”.

Brincamos e conversamos um pouco sobre tudo e sobre nada.

A dada altura contou-me:

– Vou encontrar a minha família, os meus irmãos. E tu?

– Eu também – respondi sem pensar.

Apercebi-me instantes depois da resposta que lhe dera: “eu também” … Deus queira e me ajude para que assim seja!

Aterrei em Nampula ao final da tarde. Estava já escuro. Ainda estava à procura das malas quando a Kasia entrou na «sala» … Que bom sentir-me acolhida e recebida com aquele entusiasmo que a fez “invadir” aquele espaço para vir ao meu encontro!

Dali seguimos para a casa das Irmãs. Jantamos, conversamos, descansamos. Ao ir para o quarto dei-me «realmente» conta da novidade que estava a acontecer: rede mosquiteira na cama. Não há como enganar, “isto está mesmo a acontecer!”.

Deitei-me feliz e agradecida a Deus por todas as graças que tive até agora, particularmente, ao longo do dia de hoje. O resto, que seja como Ele quiser.

Sexta feira, 11 de agosto de 2017

Esta tarde, eu e a Kasia, retomamos caminho, agora para Carapira, onde está a nossa missão, a nossa casa. Pelo caminho deliciei-me com a paisagem. A minha primeira ou ‘maior’ impressão de África, de Moçambique, é o espaço – um espaço a perder de vista e em que todos os caminhos são longos, em que há um silêncio da própria paisagem que se faz sentir dentro de nós. Uma paisagem infinda que pede um tempo paciente e demorado para a contemplação. Confio que seja impossível não se ficar extasiado com esta poesia que habita o mundo e que é uma imensidão, o horizonte de Deus.

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À noite, depois do jantar, recebemos em nossa casa um casal de leigos locais, os Professores Martinho e Margarida, as Irmãs Combonianas (Irmãs Clarinda, Eleonora, Maria José e Teresinha), o Irmão Luigi e o Padre Firmino. Foi um momento bonito e alegre de convivência que provou, uma vez mais, o sentido de hospitalidade, sobretudo, que aqui se vive.

Marisa MozambiqueQuarta feira, 16 de agosto de 2017

Acordei esta noite a pensar que a hora para me levantar estaria próxima. A falta de luz, dentro e fora do quarto, diziam-me que não. Peguei na lanterna, apontei para o relógio pousado junto à cama e os ponteiros confirmaram-me que era noite, e bem noite. Tinha, pelo menos, umas três horas até aos primeiros sinais do dia.  Não consegui adormecer. Sentei-me na cama, encostei-me à parede e descansei na quietude tão singular que aqui se encontra em horas como aquela. “Que paz!”, pensava, enquanto lembrava aquela bonita expressão que tanto sentido me fez de S. João da Cruz – “a noite é o tempo da casa sossegada”.

Quinta feira, 17 de agosto de 2017

Esta manhã fui pela primeira vez ao bairro, à comunidade. No caminho de regresso o meu coração vinha cheio de alegria. Brinquei com as crianças. Àquelas que me falavam em macua, não consegui compreender o que me diziam. Assim como elas não me compreendiam também. Mas rimos e brincamos, e com esta alegria de sermos crianças conseguimos assegurar afetivamente alguma comunicação não verbal. Com as crianças, até agora, pelo menos, tem funcionado…

Ao passar na entrada da escola, à conversa com Sérgio estava uma senhora. Cumprimentamo-nos:

– Salama! Ihàli?

– Salama! Khinyuwo?

E não deu para mais. Se não contasse com a ajuda de Sérgio, não teria percebido o que a senhora me tentava comunicar. Por um lado, sentia-me agradecida: pela senhora que, mesmo compreendendo que eu precisava de tradução sistemática, não desistiu de falar comigo e de me contar como estava a família e saúde; pela pessoa que me acompanhou e traduziu pacientemente a conversa. Por outro lado, sentia-me envergonhada por não conseguir alcançar o que me estava a ser dito (não só ali, naquele bocadinho, mas durante toda a manhã, e noutros momentos singulares durante a semana, exemplarmente, na eucaristia de Domingo que fora celebrada em língua Macua).

“Depender de traduções exige paciência e humildade… ajoelha-te Marisa, faz-te pequena e sente-te grata”, consolei-me.

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Voltei a casa. Estava a arrumar umas coisas quando ouço uma voz jovem:

– Hoti? (Dá licença?)

– Hotìni (faça favor), respondi.

Abri a porta e uma jovem esperava-me com um sorriso. “Oh, bolas! Estou sozinha em casa… se me vem pedir ajuda para o que quer que seja, eu não sei como lhe responder porque ainda não conheço nada…”, pensava enquanto saía…

– Sou Ancha, ouviste falar de mim? Vim me apresentar e dar as boas vindas…

Lá conversamos durante um bocado. «Tempo» … as pessoas aqui conversam e “gastam” tempo uns com os outros – desinteressadamente. Aquele preliminar foi mais uma lição. Aprende, Marisa.

À despedida disse-me qualquer coisa em macua. Não compreendi nem consegui devolver-lhe uma resposta. “Tenho que aprender qualquer coisa de macua… é o mínimo que sinto que posso fazer, para já, como reconhecimento a tamanha hospitalidade do povo…”, disse para mim mesma ao entrar em casa.

Ainda assim… apesar do desconforto que podemos sentir quando não sabemos alguma coisa, não saber «nada» também traz alguma saúde interior e criatividade.

Marisa MozambiqueMarisa Almeida, LMC em Moçambique

Mensagem de sua Santidade Papa Francisco para o Dia Mundial das Missões 2017

PapaFrancisco

A missão no coração da fé cristã

 

Queridos irmãos e irmãs!

O Dia Mundial das Missões concentra-nos, também este ano, na pessoa de Jesus, «o primeiro e maior evangelizador» (Paulo VI, Exort. ap. Evangelii nuntiandi, 7), que incessantemente nos envia a anunciar o Evangelho do amor de Deus Pai, com a força do Espírito Santo. Este Dia convida-nos a refletir novamente sobre a missão no coração da fé cristã. De facto a Igreja é, por sua natureza, missionária; se assim não for, deixa de ser a Igreja de Cristo, não passando duma associação entre muitas outras, que rapidamente veria exaurir-se a sua finalidade e desapareceria. Por isso, somos convidados a interrogar-nos sobre algumas questões que tocam a própria identidade cristã e as nossas responsabilidades de crentes, num mundo baralhado com tantas quimeras, ferido por grandes frustrações e dilacerado por numerosas guerras fratricidas, que injustamente atingem sobretudo os inocentes. Qual é o fundamento da missão? Qual é o coração da missão? Quais são as atitudes vitais da missão?

A missão e o poder transformador do Evangelho de Cristo, Caminho, Verdade e Vida

1. A missão da Igreja, destinada a todos os homens de boa vontade, funda-se sobre o poder transformador do Evangelho. Este é uma Boa Nova portadora duma alegria contagiante, porque contém e oferece uma vida nova: a vida de Cristo ressuscitado, o qual, comunicando o seu Espírito vivificador, torna-Se para nós Caminho, Verdade e Vida (cf. Jo 14, 6). É Caminho que nos convida a segui-Lo com confiança e coragem. E, seguindo Jesus como nosso Caminho, fazemos experiência da sua Verdade e recebemos a sua Vida, que é plena comunhão com Deus Pai na força do Espírito Santo, liberta-nos de toda a forma de egoísmo e torna-se fonte de criatividade no amor.

2. Deus Pai quer esta transformação existencial dos seus filhos e filhas; uma transformação que se expressa como culto em espírito e verdade (cf. Jo 4, 23-24), ou seja, numa vida animada pelo Espírito Santo à imitação do Filho Jesus para glória de Deus Pai. «A glória de Deus é o homem vivo» (Ireneu, Adversus haereses IV, 20, 7). Assim, o anúncio do Evangelho torna-se palavra viva e eficaz que realiza o que proclama (cf. Is 55, 10-11), isto é, Jesus Cristo, que incessantemente Se faz carne em cada situação humana (cf. Jo 1, 14).

A missão e o kairós de Cristo

3. Por conseguinte, a missão da Igreja não é a propagação duma ideologia religiosa, nem mesmo a proposta duma ética sublime. No mundo, há muitos movimentos capazes de apresentar ideais elevados ou expressões éticas notáveis. Diversamente, através da missão da Igreja, é Jesus Cristo que continua a evangelizar e agir; e, por isso, aquela representa o kairós, o tempo propício da salvação na história. Por meio da proclamação do Evangelho, Jesus torna-Se sem cessar nosso contemporâneo, consentindo à pessoa que O acolhe com fé e amor experimentar a força transformadora do seu Espírito de Ressuscitado que fecunda o ser humano e a criação, como faz a chuva com a terra. «A sua ressurreição não é algo do passado; contém uma força de vida que penetrou o mundo. Onde parecia que tudo morreu, voltam a aparecer por todo o lado os rebentos da ressurreição. É uma força sem igual» (Exort. ap. Evangelii gaudium, 276).

4. Lembremo-nos sempre de que, «ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo» (Bento XVI, Carta. enc. Deus caritas est, 1). O Evangelho é uma Pessoa, que continuamente Se oferece e, a quem A acolhe com fé humilde e operosa, continuamente convida a partilhar a sua vida através duma participação efetiva no seu mistério pascal de morte e ressurreição. Assim, por meio do Batismo, o Evangelho torna-se fonte de vida nova, liberta do domínio do pecado, iluminada e transformada pelo Espírito Santo; através da Confirmação, torna-se unção fortalecedora que, graças ao mesmo Espírito, indica caminhos e estratégias novas de testemunho e proximidade; e, mediante a Eucaristia, torna-se alimento do homem novo, «remédio de imortalidade» (Inácio de Antioquia, Epistula ad Ephesios, 20, 2).

5. O mundo tem uma necessidade essencial do Evangelho de Jesus Cristo. Ele, através da Igreja, continua a sua missão de Bom Samaritano, curando as feridas sanguinolentas da humanidade, e a sua missão de Bom Pastor, buscando sem descanso quem se extraviou por veredas enviesadas e sem saída. E, graças a Deus, não faltam experiências significativas que testemunham a força transformadora do Evangelho. Penso no gesto daquele estudante «dinka» que, à custa da própria vida, protege um estudante da tribo «nuer» que ia ser assassinado. Penso naquela Celebração Eucarística em Kitgum, no norte do Uganda – então ensanguentado pelas atrocidades dum grupo de rebeldes –, quando um missionário levou as pessoas a repetirem as palavras de Jesus na cruz: «Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonaste?» (Mc 15, 34), expressando o grito desesperado dos irmãos e irmãs do Senhor crucificado. Aquela Celebração foi fonte de grande consolação e de muita coragem para as pessoas. E podemos pensar em tantos testemunhos – testemunhos sem conta – de como o Evangelho ajuda a superar os fechamentos, os conflitos, o racismo, o tribalismo, promovendo por todo o lado a reconciliação, a fraternidade e a partilha entre todos.

A missão inspira uma espiritualidade de êxodo, peregrinação e exílio contínuos

6. A missão da Igreja é animada por uma espiritualidade de êxodo contínuo. Trata-se de «sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho» (Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 20). A missão da Igreja encoraja a uma atitude de peregrinação contínua através dos vários desertos da vida, através das várias experiências de fome e sede de verdade e justiça. A missão da Igreja inspira uma experiência de exílio contínuo, para fazer sentir ao homem sedento de infinito a sua condição de exilado a caminho da pátria definitiva, pendente entre o «já» e o «ainda não» do Reino dos Céus.

7. A missão adverte a Igreja de que não é fim em si mesma, mas instrumento e mediação do Reino. Uma Igreja autorreferencial, que se compraza dos sucessos terrenos, não é a Igreja de Cristo, seu corpo crucificado e glorioso. Por isso mesmo, é preferível «uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças» (Ibid., 49).

Os jovens, esperança da missão

8. Os jovens são a esperança da missão. A pessoa de Jesus e a Boa Nova proclamada por Ele continuam a fascinar muitos jovens. Estes buscam percursos onde possam concretizar a coragem e os ímpetos do coração ao serviço da humanidade. «São muitos os jovens que se solidarizam contra os males do mundo, aderindo a várias formas de militância e voluntariado. (…) Como é bom que os jovens sejam “caminheiros da fé”, felizes por levarem Jesus Cristo a cada esquina, a cada praça, a cada canto da terra!» (Ibid., 106). A próxima Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, que terá lugar em 2018 sobre o tema «Os jovens, a fé e o discernimento vocacional», revela-se uma ocasião providencial para envolver os jovens na responsabilidade missionária comum, que precisa da sua rica imaginação e criatividade.

O serviço das Obras Missionárias Pontifícias

9. As Obras Missionárias Pontifícias são um instrumento precioso para suscitar em cada comunidade cristã o desejo de sair das próprias fronteiras e das próprias seguranças, fazendo-se ao largo a fim de anunciar o Evangelho a todos. Através duma espiritualidade missionária profunda vivida dia-a-dia e dum esforço constante de formação e animação missionária, envolvem-se adolescentes, jovens, adultos, famílias, sacerdotes, religiosos e religiosas, bispos para que, em cada um, cresça um coração missionário. Promovido pela Obra da Propagação da Fé, o Dia Mundial das Missões é a ocasião propícia para o coração missionário das comunidades cristãs participar, com a oração, com o testemunho da vida e com a comunhão dos bens, na resposta às graves e vastas necessidades da evangelização.

Fazer missão com Maria, Mãe da evangelização

10. Queridos irmãos e irmãs, façamos missão inspirando-nos em Maria, Mãe da evangelização. Movida pelo Espírito, Ela acolheu o Verbo da vida na profundidade da sua fé humilde. Que a Virgem nos ajude a dizer o nosso «sim» à urgência de fazer ressoar a Boa Nova de Jesus no nosso tempo; nos obtenha um novo ardor de ressuscitados para levar, a todos, o Evangelho da vida que vence a morte; interceda por nós, a fim de podermos ter uma santa ousadia de procurar novos caminhos para que chegue a todos o dom da salvação.

Vaticano, 4 de junho – Solenidade de Pentecostes – de 2017.

FRANCISCO

 

 

O acolhimento dos novos paradigmas e desafios da missão

Paradigma-missione

Retomando a visão do Concílio Vaticano II, o Papa Francisco elegeu o paradigma da «Igreja em saída» como programa missionário do nosso tempo. Esta retomada é significativa porque contextualizada num mundo, o hodierno, que está em forte descontinuidade com o passado. «Não vivemos numa época de mudanças, mas numa mudança de época»: com estas palavras o Papa Francisco recordou-nos que os velhos esquemas com os quais interpretávamos o mundo e a missão já não são eficazes para responder aos desafios de hoje. A nova realidade global pede uma «missão global», considerada em toda a sua complexidade e com pressupostos, estilos e instrumentos renovados relativamente à tradição do passado (EG, 33).

O esquema clássico que via as Igrejas do Norte enviar missionários para o Sul do mundo foi superado pelas transformações dos últimos decénios, com a globalização e uma mobilidade humana que atingiram níveis nunca antes vistos. Também as circunscrições combonianas reflectem esta mudança: na composição do pessoal, no enviar missionários para outras províncias, no facto que a animação missionária é um empenho presente por toda a parte e não mais um campo de serviço exclusivo das províncias do Norte do mundo.

O critério geográfico da missão já não constitui o ponto de referência principal. Permanece a ideia de fronteira, mas esta, agora, qualifica-se nas periferias humanas e existenciais. É um grande desafio para os institutos missionários, cuja maioria dos membros de hoje provavelmente aderiu ao seu instituto identificando a missão com uma particular área geográfica. Há uma ligação afectiva com a geografia e a história; a noção de «missão global» desperta um certo desconforto, o receio de ver-se «bloqueados» no norte do mundo ou na sua província de origem pela ideia que «a missão é em toda a parte», ou «também na Europa». Na realidade, esta preocupação – compreensível e justificada – reflecte ainda o esquema geográfico, que é aquele que dizíamos superado. Como pensar, então, de  modo alternativo, mais correspondente à realidade de hoje?

O Papa Francisco convida-nos a partir das fronteiras, as «periferias que precisam da luz do Evangelho» (EG, 20). Estas não são simplesmente um dado geográfico, mas o resultado de um sistema económico-financeiro que gera exclusão, da cultura do descartável que produz empobrecimento e violência. Levar a luz do Evangelho a estas periferias requer antes de mais inserção, isto é:

  • uma presença radicada no território;
  • um envolvimento na vida quotidiana da gente;
  • uma solidariedade no seu sofrimento e instâncias;
  • um acompanhar esta humanidade ao longo de todos os seus processos, por muito duros e prolongados que possam ser.

Aqui está a chave da aproximação ministerial: este acompanhamento não é genérico, não é uma pastoral ordinária levada às periferias. No Capítulo Geral de 2015, sobressaiu que estamos presentes, inseridos em algumas periferias muito significativas para o nosso carisma, como por exemplo entre os afrodescendentes e os povos indígenas na América Latina, ou entre os povos pastoris e os residentes dos bairros de lata na África. Mas, frequentemente, não há uma pastoral específica que tenha em conta a particularidade do contexto, das situações, da cultura local, da unicidade daquele povo. Uma pastoral que, na complexidade do mundo de hoje, exige a articulação de diversos ministérios e um evangelizar como comunidade. Comunidades apostólicas que não só colaboram identificando e partilhando os próprios dons, mas também que testemunham o Reino vivendo a fraternidade e a comunhão na diversidade.

Todos estes elementos não são «novos»; tomados em si mesmos podem estar já presentes em várias experiências do Instituto e já se falou disso em diversos Capítulos. Mas somos chamados a assumi–los numa nova perspectiva, ou paradigma, ou seja um ponto de vista sobre a missão que reorganize todos os seus aspectos fundamentais. A imagem da «Igreja em saída» é um quadro que sugere uma ideia de missão e uma metodologia pastoral (tomar a iniciativa, envolver-se, acompanhar, frutificar, festejar, EG, 24). É paradigmática, porque pede também que outras dimensões fundamentais, como a formação e a organização do Instituto a vários níveis, se tornem coerentes e dirigidas a esta missão.

A este ponto, como podemos acolher na prática este paradigma e quais desafios temos de enfrentar? O Capítulo sugere-nos começar pela missão, partindo da identificação das prioridades continentais, partilhadas por mais circunscrições e vividas numa mais ampla colaboração, a nível interprovincial ou continental. No contexto de tais prioridades, somos chamados a desenvolver pastorais específicas como a requalificação da nossa presença e serviço missionário. Mantendo assente este ponto central, teremos um ponto de referência para repensar também a formação e a reorganização do Instituto.

  1. Desenvolver pastorais específicas

Desenvolver uma pastoral específica é uma tarefa eclesial, não se pode fazê-la sozinhos. Requer diálogo, participação, colaboração, multiplicidade de competências e experiências. Sobretudo, é preciso um método que permita valorizar todos os contributos, acolher experiências e perspectivas diversas, e criar comunhão na diversidade. Uma pastoral específica é assumida quando, não obstante as variedades de pontos de vista, perspectivas teológicas, sensibilidades e ministérios, todos possam reconhecer-se sem ter de anular o seu sentido de identidade. É um ponto de fundamental importância, especialmente num Instituto que está a crescer em internacionalidade e que começa a viver o desafio da interculturalidade.

Tudo isto é possível partindo da partilha das experiências mais transformadoras em relação à pastoral específica tomada em consideração, com uma aproximação de «inquérito elogioso» (Appreciative Inquiry). A reflexão comum sobre tais experiências regeneradoras faz surgir novas intuições e compreensões daquilo que torna um ministério frutuoso naquele contexto.

Para melhor compreender o porquê da eficácia e para aprofundar as dinâmicas, estas experiências devem ser depois confrontadas com uma análise sociocultural dos contextos da pastoral específica, para captar o quadro de conjunto, as dinâmicas e as tendências.

Da mesma forma, uma reflexão teológica e ministerial específica sobre essa realidade ajuda-nos a concentrar os nossos ministérios de forma mais precisa e a identificar as ferramentas operacionais mais apropriadas.

O próximo passo é o discernimento de alguns princípios que nos podem guiar nesse contexto pastoral específico. Precisamente,  enquanto linhas orientadoras, estes não dão soluções prefabricadas, mas deixam espeço para adaptar-se às situações particulares e para a criatividade. Sobre esta base será possível construir um caminho de comunhão onde experimentar, pesquisar, aprender, partilhar, trocar experiências e pessoal, documentar descobertas e resultados, e assim por diante em ciclos sucessivos de acção-reflexão (Action Learning).

  1. A reorganização

Para conseguir desenvolver e sustentar pastorais específicas é necessário chegar gradualmente a uma reorganização das nossas presenças e modo de operar. Até agora a nossa presença missionária foi principalmente baseada no critério geográfico: os confrades são destinados a uma província e depois, conforme as necessidades, são destinados a uma comunidade. Esta estrutura reflecte o pressuposto que – para lá de alguns serviços particulares – geralmente o trabalho missionário consista em fundar ou levar ao amadurecimento comunidades cristãs ou paróquias. Mas este não é o único modo possível de pensar a organização do trabalho missionário.

Por exemplo, os jesuítas, desde há uns decénios começaram a pensar o seu serviço missionário também como resposta às necessidades humanas dos refugiados (JRS), de pessoas afectadas pela SIDA (AJAN), e às situações de injustiça (centros de fé-justiça – faith-justice). O pessoal é adequadamente preparado e destinado para estes serviços.

Em anos recentes, também o Instituto comboniano empreendeu uma reflexão sobre a aproximação ministerial, visando em particular alguns grupos humanos que sofrem exclusão e ministérios em âmbitos prioritários (DC ’03 n.º 43 e 50; DC ’09 n.º 62-63; DC ’15
n.º 45). Obviamente, o elemento geográfico é imprescindível, porque também estes grupos humanos estão espacialmente colocados, a inserção na Igreja local exige também uma presença paroquial, mas o critério norteador é o ministério específico para com estes povos que requer:

  1. Equipas pastorais. São compostas por diversos ministros, com competências específicas e uma variedade de dons pessoais, que colaboram como equipa. Vista a complexidade do mundo de hoje, é oportuno juntar competências de vários géneros, incluindo, por exemplo, as competências nas ciências humanas e sociais. A diversidade de competências é de ajuda na colaboração; a diversidade de nacionalidades e culturas no seio da equipa, vividas na fraternidade, são um sinal profético num mundo cada vez mais dividido e em conflito. Esta comunhão/solidariedade é o que distingue uma equipa pastoral, que não é só uma equipa de trabalho harmonizada e eficaz, mas uma fraternidade de discípulos-missionários. Evidentemente, comunidades de grandeza média terão maiores possibilidades de ser significativas, podendo reunir competências e ministérios complementares e transversais (como por exemplo JPIC), absorver melhor as ausências devido a férias ou por motivos de saúde, desenvolver uma reflexão mais rica e partilhar competências e recursos com outras comunidades empenhadas na mesma pastoral específica. Isso exige uma redução do número de comunidades, mas facilita o trabalho em rede, desde o nível local ao interprovincial.
  2. Trabalho em rede. A equipa pastoral não trabalha isoladamente, mas, acima de tudo, está inserida e colabora com a Igreja local. Até vai mais além, cooperando com várias componentes da sociedade civil para uma transformação social inspirada nos valores do Reino. Há também outros níveis de colaboração que a experiência nos mostra como críticos: por exemplo, o fazer rede com outras comunidades e equipas ministeriais, seja a nível regional, seja à escala internacional. Sem este suporte e contínuo estímulo à abertura e ao crescimento, ao intercâmbio e à partilha de recursos, uma equipa local bem depressa se encontrará com pouco oxigénio. Sobretudo no que diz respeito à pesquisa, à experimentação, à aprendizagem contínua e à reflexão sobre as boas práticas e a inovação. O mundo continua a deslocar-se, ao passo que a equipa se arrisca a deter-se e a fossilizar-se, ou a reagir às situações em vez de responder-lhes criativamente.
  3. Estruturas de apoio. As várias equipas empenhadas numa mesma pastoral específica a nível local têm necessidade de estruturas de ligação e de apoio. Este seria também o melhor contexto para propor percursos de formação permanente, pesquisa e experimentação para melhor acompanhar a gente no seu caminho de inclusão e transformação. A colaboração com instituições académicas e de pesquisa, por exemplo, pode ser um recurso útil, como também secretariados específicos e processos de pesquisa e acção participada. É preciso também repensar as estruturas em que vivemos ou que administramos no nosso ministério. Estas, de facto, podem entrepor um certo distanciamento entre a gente e os missionários, ou até simplesmente absorvê-los tanto na administração que percam o contacto directo com as pessoas ou a disponibilidade para caminhar ao lado delas. De notar, além disso, como também o Fundo Comum Total é uma oportunidade que pode ajudar-nos a fazer uma programação participativa e responsável no contexto de uma pastoral provincial específica. A dimensão económica, de facto, relaciona-se com as escolhas de estilo, meios, cooperação e programação de um sector pastoral, com o qual interagem os projectos comunitários. Por fim, a redução dos empenhos e a requalificação das presenças e serviços missionários requeridos pelo último Capítulo Geral tornar-se-ão uma realidade se tivermos os instrumentos e o método para os realizar através de caminhos de comunhão, inclusivos e participados. É nesta vertente que se joga a eficácia de uma liderança que não seja apenas administrativa, mas que nos conduza a uma nova primavera.
  1. Uma formação visada

Também a formação de base deve ser revista para desenvolver competências ministeriais, sobretudo no que concerne o curriculum dos escolásticos. Os programas de Teologia, que geralmente oferecem uma preparação teológica e académica, não formam necessariamente para as atitudes e competências úteis à aproximação ministerial, nem fornecem apoio, metodologias e instrumentos práticos que tanto ajudariam a uma pastoral específica. É óbvio que um curriculum de estudos será tanto mais útil quanto for ao encontro das escolhas de ministérios específicos do Instituto. Poder-se-ia, portanto, pensar na possibilidade de caracterizar a formação nos escolasticados como orientações coerentes com as prioridades ministeriais do continente em que se encontram. Ainda que depois um confrade se encontre a trabalhar noutros contextos, as competências ministeriais adquiridas serão em parte transferíveis e, em qualquer caso, uma melhor base para aprender outras.

Em conclusão, o acolhimento do novo paradigma de missão não significa deitar fora o passado para introduzir só coisas completamente novas. Antes, trata-se de reorientar e integrar os diversos aspectos da vida e do serviço missionário (pastorais específicas, pessoas, reorganização, economia) em torno da visão de missão indicada pelo Capítulo e dos processos participativos de requalificação das nossas presenças e serviço missionário.

Ir. Alberto Parise mccj

Perguntas

  1. Para desenvolver pastorais específicas é pedida uma leitura aprofundada da realidade. É prática comum (nas comunidades, zonas, circunscrições e continentes) uma leitura da realidade (através da adopção, por exemplo, do circulo hermenêutico) para identificar necessidades pastorais e adoptar modalidades de presença e de intervenção que encontrem tais necessidades?
  2. Quais passos foram dados na circunscrição para repensar os objectivos, a estrutura, o estilo e os métodos de evangelização segundo uma óptica ministerial?
  3. Ministérios específicos (que concernem, por exemplo, os afrodescendentes e os povos indígenas na América Latina, os povos pastoris em África e os residentes dos bairros de lata, os refugiados, etc.) exigem, além de equipas pastorais, um trabalho em rede e estruturas de apoio que tenham perspectivas pastorais continentais. Quanto é que a nossa programação pastoral consegue superar os limites geográficos das circunscrições e adoptar uma aproximação continental? Quais estruturas continentais deveriam ser reforçadas para favorecer um critério continental às necessidades pastorais comuns?