Leigos Missionários Combonianos

Mensagem do Santo Padre Francisco para o IV Dia Mundial dos Pobres

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«Estende a tua mão ao pobre» (Sir 7, 32)

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«Estende a tua mão ao pobre» (Sir 7, 32): a sabedoria antiga dispôs estas palavras como um código sacro que se deve seguir na vida. Hoje ressoam com toda a densidade do seu significado para nos ajudar, também a nós, a concentrar o olhar no essencial e superar as barreiras da indiferença. A pobreza assume sempre rostos diferentes, que exigem atenção a cada condição particular: em cada uma destas, podemos encontrar o Senhor Jesus, que revelou estar presente nos seus irmãos mais frágeis (cf. Mt 25, 40).

1. Tomemos nas mãos o Ben-Sirá, um dos livros do Antigo Testamento. Nele encontramos as palavras dum mestre da sabedoria que viveu cerca de duzentos anos antes de Cristo. Andava à procura da sabedoria que torna os homens melhores e capazes de perscrutar profundamente as vicissitudes da vida. E fê-lo num período de dura prova para o povo de Israel, um tempo de dor, luto e miséria por causa da dominação de potências estrangeiras. Sendo um homem de grande fé, enraizado nas tradições dos pais, o seu primeiro pensamento foi dirigir-se a Deus para Lhe pedir o dom da sabedoria. E o Senhor não lhe deixou faltar a sua ajuda.

Desde as primeiras páginas do livro, Ben-Sirá propõe os seus conselhos sobre muitas situações concretas da vida, sendo a pobreza uma delas. Insiste que, na contrariedade, é preciso ter confiança em Deus: «Não te perturbes no tempo do infortúnio. Conserva-te unido a Ele e não te separes, para teres bom êxito no teu momento derradeiro. Aceita tudo o que te acontecer e tem paciência nas vicissitudes da tua humilhação, porque no fogo se prova o ouro, e os eleitos de Deus no cadinho da humilhação. Nas doenças e na pobreza, confia n’Ele. Confia em Deus e Ele te salvará, endireita os teus caminhos e espera n’Ele. Vós que temeis o Senhor, esperai na sua misericórdia, e não vos afasteis, para não cairdes» (2, 2-7).

2. Página a página, descobrimos um precioso compêndio de sugestões sobre o modo de agir à luz duma relação íntima com Deus, criador e amante da criação, justo e providente para com todos os seus filhos. Mas, a constante referência a Deus não impede de olhar para o homem concreto; pelo contrário, as duas realidades estão intimamente conexas.

Demonstra-o claramente o texto donde se tirou o título desta Mensagem (cf. 7, 29-36). São inseparáveis a oração a Deus e a solidariedade com os pobres e os enfermos. Para celebrar um culto agradável ao Senhor, é preciso reconhecer que toda a pessoa, mesmo a mais indigente e desprezada, traz gravada em si mesma a imagem de Deus. De tal consciência deriva o dom da bênção divina, atraída pela generosidade praticada para com os pobres. Por isso, o tempo que se deve dedicar à oração não pode tornar-se jamais um álibi para descuidar o próximo em dificuldade. É verdade o contrário: a bênção do Senhor desce sobre nós e a oração alcança o seu objetivo, quando eles são acompanhadas pelo serviço dos pobres.

3. Como permanece atual, também para nós, este ensinamento! Na realidade, a Palavra de Deus ultrapassa o espaço, o tempo, as religiões e as culturas. A generosidade que apoia o vulnerável, consola o aflito, mitiga os sofrimentos, devolve dignidade a quem dela está privado, é condição para uma vida plenamente humana. A opção de prestar atenção aos pobres, às suas muitas e variadas carências, não pode ser condicionada pelo tempo disponível ou por interesses privados, nem por projetos pastorais ou sociais desencarnados. Não se pode sufocar a força da graça de Deus pela tendência narcisista de se colocar sempre a si mesmo no primeiro lugar.

Manter o olhar voltado para o pobre é difícil, mas tão necessário para imprimir a justa direção à nossa vida pessoal e social. Não se trata de gastar muitas palavras, mas antes de comprometer concretamente a vida, impelidos pela caridade divina. Todos os anos, com o Dia Mundial dos Pobres, volto a esta realidade fundamental para a vida da Igreja, porque os pobres estão e sempre estarão connosco (cf. Jo 12, 8) para nos ajudar a acolher a companhia de Cristo na existência do dia a dia.

4. O encontro com uma pessoa em condições de pobreza não cessa de nos provocar e questionar. Como podemos contribuir para eliminar ou pelo menos aliviar a sua marginalização e o seu sofrimento? Como podemos ajudá-la na sua pobreza espiritual? A comunidade cristã é chamada a coenvolver-se nesta experiência de partilha, ciente de que não é lícito delegá-la a outros. E, para servir de apoio aos pobres, é fundamental viver pessoalmente a pobreza evangélica. Não podemos sentir-nos tranquilos, quando um membro da família humana é relegado para a retaguarda, reduzindo-se a uma sombra. O clamor silencioso de tantos pobres deve encontrar o povo de Deus na vanguarda, sempre e em toda parte, para lhes dar voz, defendê-los e solidarizar-se com eles face a tanta hipocrisia e tantas promessas não cumpridas, e para os convidar a participar na vida da comunidade.

É verdade que a Igreja não tem soluções globais a propor, mas oferece, com a graça de Cristo, o seu testemunho e gestos de partilha. Além disso, sente-se obrigada a apresentar os pedidos de quantos não têm o necessário para viver. Lembrar a todos o grande valor do bem comum é, para o povo cristão, um compromisso vital, que se concretiza na tentativa de não esquecer nenhum daqueles cuja humanidade é violada nas suas necessidades fundamentais.

5. Estender a mão leva a descobrir, antes de tudo a quem o faz, que dentro de nós existe a capacidade de realizar gestos que dão sentido à vida. Quantas mãos estendidas se veem todos os dias! Infelizmente, sucede sempre com maior frequência que a pressa faz cair num turbilhão de indiferença, a tal ponto que se deixa de reconhecer todo o bem que se realiza diariamente no silêncio e com grande generosidade. Assim, só quando acontecem factos que transtornam o curso da nossa vida é que os olhos se tornam capazes de vislumbrar a bondade dos santos «ao pé da porta», «daqueles que vivem perto de nós e são um reflexo da presença de Deus» (Francisco, Exort. ap. Gaudete et exsultate, 7), mas dos quais ninguém fala. As más notícias abundam de tal modo nas páginas dos jornais, nos sites da internet e nos visores da televisão, que faz pensar que o mal reine soberano. Mas não é assim. Certamente não faltam a malvadez e a violência, a prepotência e a corrupção, mas a vida está tecida por atos de respeito e generosidade que não só compensam o mal, mas impelem a ultrapassá-lo permanecendo cheios de esperança.

6. Estender a mão é um sinal: um sinal que apela imediatamente à proximidade, à solidariedade, ao amor. Nestes meses, em que o mundo inteiro foi dominado por um vírus que trouxe dor e morte, desconforto e perplexidade, pudemos ver tantas mãos estendidas! A mão estendida do médico que se preocupa de cada paciente, procurando encontrar o remédio certo. A mão estendida da enfermeira e do enfermeiro que permanece, muito para além dos seus horários de trabalho, a cuidar dos doentes. A mão estendida de quem trabalha na administração e providencia os meios para salvar o maior número possível de vidas. A mão estendida do farmacêutico exposto a inúmeros pedidos num arriscado contacto com as pessoas. A mão estendida do sacerdote que, com o coração partido, continua a abençoar. A mão estendida do voluntário que socorre quem mora na rua e a quantos, embora possuindo um teto, não têm nada para comer. A mão estendida de homens e mulheres que trabalham para prestar serviços essenciais e segurança. E poderíamos enumerar ainda outras mãos estendidas, até compor uma ladainha de obras de bem. Todas estas mãos desafiaram o contágio e o medo, a fim de dar apoio e consolação.

7. Esta pandemia chegou de improviso e apanhou-nos impreparados, deixando uma grande sensação de desorientamento e impotência. Mas, a mão estendida ao pobre não chegou de improviso. Antes, dá testemunho de como nos preparamos para reconhecer o pobre a fim de o apoiar no tempo da necessidade. Não nos improvisamos instrumentos de misericórdia. Requer-se um treino diário, que parte da consciência de quanto nós próprios, em primeiro lugar, precisamos duma mão estendida em nosso favor.

Este período que estamos a viver colocou em crise muitas certezas. Sentimo-nos mais pobres e mais vulneráveis, porque experimentamos a sensação da limitação e a restrição da liberdade. A perda do emprego, dos afetos mais queridos, como a falta das relações interpessoais habituais, abriu subitamente horizontes que já não estávamos acostumados a observar. As nossas riquezas espirituais e materiais foram postas em questão e descobrimo-nos amedrontados. Fechados no silêncio das nossas casas, descobrimos como é importante a simplicidade e o manter os olhos fixos no essencial. Amadureceu em nós a exigência duma nova fraternidade, capaz de ajuda recíproca e estima mútua. Este é um tempo favorável para «voltar a sentir que precisamos uns dos outros, que temos uma responsabilidade para com os outros e o mundo (…). Vivemos já muito tempo na degradação moral, baldando-nos à ética, à bondade, à fé, à honestidade (…). Uma tal destruição de todo o fundamento da vida social acaba por colocar-nos uns contra os outros na defesa dos próprios interesses, provoca o despertar de novas formas de violência e crueldade e impede o desenvolvimento duma verdadeira cultura do cuidado do meio ambiente» (Francisco, Carta enc. Laudato si’, 229). Enfim, as graves crises económicas, financeiras e políticas não cessarão enquanto permitirmos que permaneça em letargo a responsabilidade que cada um deve sentir para com o próximo e toda a pessoa.

8. «Estende a mão ao pobre» é, pois, um convite à responsabilidade, sob forma de empenho direto, de quem se sente parte do mesmo destino. É um encorajamento a assumir os pesos dos mais vulneráveis, como recorda São Paulo: «Pelo amor, fazei-vos servos uns dos outros. É que toda a Lei se cumpre plenamente nesta única palavra: ama o teu próximo como a ti mesmo. (…) Carregai as cargas uns dos outros» (Gal 5, 13-14; 6, 2). O Apóstolo ensina que a liberdade que nos foi dada com a morte e ressurreição de Jesus Cristo é, para cada um de nós, uma responsabilidade para colocar-se ao serviço dos outros, sobretudo dos mais frágeis. Não se trata duma exortação facultativa, mas duma condição da autenticidade da fé que professamos.

E aqui volta o livro de Ben-Sirá em nossa ajuda: sugere ações concretas para apoiar os mais vulneráveis e usa também algumas imagens sugestivas. Primeiro, toma em consideração a debilidade de quantos estão tristes: «Não fujas dos que choram» (7, 34). O período da pandemia constrangeu-nos a um isolamento forçado, impedindo-nos até de poder consolar e estar junto de amigos e conhecidos atribulados com a perda dos seus entes queridos. E, depois, afirma o autor sagrado: «Não sejas preguiçoso em visitar um doente» (7, 35). Experimentamos a impossibilidade de estar junto de quem sofre e, ao mesmo tempo, tomamos consciência da fragilidade da nossa existência. Enfim, a Palavra de Deus nunca nos deixa tranquilos e continua a estimular-nos para o bem.

9. «Estende a mão ao pobre» faz ressaltar, por contraste, a atitude de quantos conservam as mãos nos bolsos e não se deixam comover pela pobreza, da qual frequentemente são cúmplices também eles. A indiferença e o cinismo são o seu alimento diário. Que diferença relativamente às mãos generosas que acima descrevemos! Com efeito, existem mãos estendidas para premer rapidamente o teclado dum computador e deslocar somas de dinheiro duma parte do mundo para outra, decretando a riqueza de restritas oligarquias e a miséria de multidões ou a falência de nações inteiras. Há mãos estendidas a acumular dinheiro com a venda de armas que outras mãos, incluindo mãos de crianças, utilizarão para semear morte e pobreza. Existem mãos estendidas que, na sombra, trocam doses de morte para se enriquecer e viver no luxo e num efémero desregramento. Existem mãos estendidas que às escondidas trocam favores ilegais para um lucro fácil e corruto. E há também mãos estendidas que, numa hipócrita respeitabilidade, estabelecem leis que eles mesmos não observam.

Neste cenário, «os excluídos continuam a esperar. Para se poder apoiar um estilo de vida que exclui os outros ou mesmo entusiasmar-se com este ideal egoísta, desenvolveu-se uma globalização da indiferença. Quase sem nos dar conta, tornamo-nos incapazes de nos compadecer ao ouvir os clamores alheios, já não choramos à vista do drama dos outros, nem nos interessamos por cuidar deles, como se tudo fosse uma responsabilidade de outrem, que não nos incumbe» (Francisco, Exort. ap Evangelii gaudium, 54). Não poderemos ser felizes enquanto estas mãos que semeiam morte não forem transformadas em instrumentos de justiça e paz para o mundo inteiro.

10. «Em todas as tuas obras, lembra-te do teu fim» (Sir 7, 36): tal é a frase com que Ben-Sirá conclui a sua reflexão. O texto presta-se a uma dupla interpretação. A primeira destaca que precisamos de ter sempre presente o fim da nossa existência. A lembrança do nosso destino comum pode ajudar a conduzir uma vida sob o signo da atenção a quem é mais pobre e não teve as mesmas possibilidades que nós. Mas existe também uma segunda interpretação, que evidencia principalmente a finalidade, o objetivo para o qual tende cada um. É a finalidade da nossa vida que exige um projeto a realizar e um caminho a percorrer sem se cansar. Pois bem! O objetivo de cada ação nossa só pode ser o amor: tal é o objetivo para onde caminhamos, e nada deve distrair-nos dele. Este amor é partilha, dedicação e serviço, mas começa pela descoberta de que primeiro fomos nós amados e despertados para o amor. Esta finalidade aparece no momento em que a criança se cruza com o sorriso da mãe, sentindo-se amada pelo próprio facto de existir. De igual modo um sorriso que partilhamos com o pobre é fonte de amor e permite viver na alegria. Possa então a mão estendida enriquecer-se sempre com o sorriso de quem não faz pesar a sua presença nem a ajuda que presta, mas alegra-se apenas em viver o estilo dos discípulos de Cristo.

Neste caminho de encontro diário com os pobres, acompanha-nos a Mãe de Deus que é, mais do que qualquer outra, a Mãe dos pobres. A Virgem Maria conhece de perto as dificuldades e os sofrimentos de quantos estão marginalizados, porque Ela mesma Se viu a dar à luz o Filho de Deus num estábulo. Devido à ameaça de Herodes, fugiu, juntamente com José, seu esposo, e o Menino Jesus, para outro país e, durante alguns anos, a Sagrada Família conheceu a condição de refugiados. Possa a oração à Mãe dos pobres acomunar estes seus filhos prediletos e quantos os servem em nome de Cristo. E a oração transforme a mão estendida num abraço de partilha e reconhecida fraternidade.

Roma, em São João de Latrão, na Memória litúrgica de Santo António, 13 de junho de 2020.

Francisco

FRATELLI TUTTI

LMC asamblea Roma

Encíclica do Papa Francisco sobre a Fraternidade e a Amizade Social

LMC asamblea Roma

O Papa Francisco continua a ‘primeirear’, como propôs na ‘Alegria do Evangelho’, o seu primeiro grande texto programático. Sim, ‘primeirear’ é tomar a iniciativa, ser primeiro a dar certos passos, avançar à frente… rumo a uma Igreja e um mundo onde a fraternidade não seja mais palavra de dicionário, mas corresponda a vidas concretas e felizes.

‘Todos somos irmãs e irmãos’, é muito claro para o Papa Francisco, como foi claro demais na vida e palavras de Cristo há dois mil anos. Durante mais de dois milénios, o mundo está a marcar passo na realização deste objectivo maior. Muitas vezes focamos mais aquilo que nos separa do que o que nos une. E, com estas posturas arrogantes, o mundo tem construído mais muros do que pontes.

Com este documento, o Papa Francisco tenta dar um passo rumo a um futuro de fraternidade universal. Se formos verdadeiramente irmãos, serão pouco decisivos a raça, a cor, o país, as ideias, a religião, o clube de futebol, os gostos pessoais, os títulos académicos, a conta bancária, o emprego, as músicas preferidas… porque, no essencial, estamos abraçados: somos todos irmãs e irmãos uns dos outros, sem fronteiras.

É um texto inspirador para estes tempos de pandemia mundial. Publicado em Assis e em dia de São Francisco, é um sinal para o mundo inteiro, como Francisco é símbolo de paz e fraternidade universal. Independentemente dos rios de tinta que fará correr, quero já deixar bem clara a minha posição: a favor, completamente. A única viagem que faz sentido é aquela que nos levar ao coração dos outros, a começar por aqueles que pensam e rezam diferente de mim. Deus criou-nos irmãos e Cristo pediu-nos que nos amássemos uns aos outros e partíssemos ao encontro de todos, como ele andou por terras da Galileia e Samaria.

As palavras e os gestos do Papa em Assis foram tão densos, tão intensos, tão profundos, tão provocadores…. Aos Bispos, o Papa explica: ‘o título é a mensagem de Jesus animando-nos a reconhecermos todos como irmãos e irmãs e assim viver na casa comum que o Pai nos confiou’. Esta Carta Encíclica, sobre a fraternidade e a amizade social, tem por título a expressão que S. Francisco de Assis usava para se dirigir a todos para lhes propor ‘uma forma de vida com sabor a Evangelho (FT 1).’ S. Francisco propunha uma ‘fraternidade aberta que permite reconhecer, valorizar e amar cada pessoa, para além do contexto físico, para lá do lugar do mundo onde tenha nascido ou viva’ (FT1).

Francisco é exemplo porque semeou a paz por onde passou e caminhou com os pobres, abandonados, doentes e descartados. Em resumo, esteve sempre ao lado dos últimos. Tinha um coração sem fronteiras, não fazia guerras de ideias, pois achava que o caminho certo era o de viver e partilhar o amor de Deus, despertando o sonho de uma sociedade fraterna.

São Francisco fez uma aposta de vida corajosa e impensável para as pessoas do seu tempo: ‘libertou-se de todo o desejo de domínio sobre os outros, fez-se um dos últimos e procurou viver em harmonia com todos’ (FT4).

A chegada da covid 19 vem dar mais razão de ser a esta encíclica pois, apesar de tanta conectividade tecnológica, os países demonstram incapacidade de atuar juntos.

O primeiro capítulo reflete sobre as sombras de um mundo fechado. O segundo, com o título ‘um estranho no caminho’, propõe uma reflexão a partir da parábola do bom samaritano. O capítulo terceiro convida a pensar e gerar um mundo mais aberto. Depois vem a proposta de um coração aberto ao mundo inteiro. Pede-se, de seguida, uma melhor política que afaste de populismos e liberalismos. Finalmente, o Papa partilha sobre o diálogo e a amizade social, abrindo caminhos de reencontro assentes na verdade, na paz e no perdão. O capítulo oitavo, em jeito de conclusão, põe as religiões ao serviço da fraternidade, afastando-as de toda a espécie de violência.

Cicatrizar o mundo. Cap. I

(As sombras dum mundo fechado, 9-55)

‘As sombras dum mundo fechado’ é o primeiro capítulo da encíclica ‘Fratelli Tutti’ com que o Papa Francisco nos acaba de brindar. A fraternidade universal está a ser travada por algumas tendências do mundo atual que dificultam o seu desenvolvimento.

Muitas conquistas humanas estão a fazer marcha atrás: ‘reacendem-se conflitos anacrónicos que se consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos’ (FT 11). Muitos governantes esquecem-se de algo essencial: ‘o bem, como aliás o amor, a justiça e a solidariedade não se alcançam de uma vez para sempre: hão-de ser conquistados cada dia’ (FT 11).

O mundo está a construir-se sob o comando de interesses estrangeiros e de poderes económicos que investem sem entraves nem controlo, impondo um modelo económico e cultural único. ‘Esta cultura unifica o mundo, mas divide as pessoas e as nações, porque a sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos’ (FT 12).

Semeia-se, sobretudo nas novas gerações, o desânimo e a desconfiança. Não cuidamos bem do mundo nem de nós próprios. Apoiamos a cultura do descarte, considerando que ‘partes da humanidade parecem sacrificáveis em benefício duma seleção que favorece a um sector humano digno de viver sem limites’ (FT 18).

O racismo continua em força, embora mais disfarçado, nascem novas pobrezas, as mafias aproveitam o medo e insegurança das pessoas, as mulheres têm menos direitos que os homens, os direitos humanos não são iguais para todos: ‘enquanto uma parte da humanidade vive na opulência, outra parte vê a própria dignidade não reconhecida, desprezada ou espezinhada e os seus direitos fundamentais ignorados ou violados’ (FT 22). E mais: ‘ainda hoje milhões de pessoas – crianças, homens e mulheres de todas as idades – são privadas da liberdade e constrangidas a viver em condições semelhantes às da escravatura’ (FT 24). Há que combater todas as formas de tráficos humanos, onde as pessoas são tratadas como meios e não como fim. O mundo está violento, vive-se hoje ‘uma terceira guerra mundial por pedaços’ (FT 25).

Em vez de pontes, os governos e as pessoas constroem ‘muros no coração, na terra, para impedir este encontro com outras culturas, com outras pessoas. E quem levanta um muro, quem constrói um muro, acabará escravo dentro dos muros que construiu, sem horizontes’ (FT 27).

O papa cita o Documento sobre a Fraternidade Humana, escrito com o Grande Imã Al-Tayyeb: ‘ressaltamos que, juntamente com tais progressos históricos (ciência, medicina, indústria, bem estar….), grandes e  apreciados, se verifica uma deterioração da ética, que condiciona a atividade internacional, e um enfraquecimento dos valores espirituais e do sentido da responsabilidade’ (FT 29).

Perdemos o sentido de pertença à comum humanidade, descobrimos planetas longínquos sem descobrir as urgências de quem vive ao lado, somos vítimas da globalização da indiferença. Por isso, grita o Papa: ‘o isolamento, não; a proximidade, sim. Cultura do confronto, não; cultura do encontro, sim’ (FT 30).

A covid 19 recordou-nos que estamos no mesmo barco a enfrentar a mesma tempestade e ninguém se salva sozinho, mas juntos. A pandemia obriga-nos a ‘repensar os nossos estilos de vida, as nossas relações, a organização das nossas sociedades e, sobretudo, o sentido da nossa existência’ (FT 33). Precisamos todos uns dos outros.

Tentamos que outros não cheguem às nossas terras, não ajudamos os países mais pobres, damos cobertura a traficantes humanos sem escrúpulos. Mas devemos também ‘reafirmar o direito a não emigrar, isto é, a ter condições para permanecer na própria terra’ (FT 38). Urge combater o medo que nos priva ‘do desejo e da capacidade de encontrar o outro’ (FT 41).

Vivemos na era digital, mas os corações não estão todos interligados. Há muita violência e fanatismo que passam pelos media hoje. Precisamos de mais sabedoria e menos manipulação e falsas notícias. E mais: ‘não devemos perder a capacidade de escuta. São Francisco de Assis escutou a voz de Deus, dos pobres, do enfermo, da natureza. E transformou tudo isto num estilo de vida’ (FT 48).

O papa, neste capítulo 1, fala mais de sombras, mas há muitos percursos de esperança, pois ‘Deus continua a espalhar sementes de bem na humanidade’ (FT 54).

O desafio do Papa é um apelo à confiança ‘caminhemos na esperança!’ (FT 55).

Próximo ou sócio? Cap.II

(um estranho no caminho, 56-86)

Já correu muita tinta a propósito da última encíclica do Papa Francisco, ‘Fratelli tutti’, mas isso só prova a sua importância e o debate que ela suscitou e ainda provoca. Vou pôr mais umas achas nesta fogueira…

O Papa faz uma reflexão muito atual sobre a parábola do bom samaritano, um texto bíblico que tem suscitado reações de muitos académicos, políticos, economistas e escritores, incluindo não crentes. O Papa Francisco faz uma distinção entre ser sócio (‘associado para determinados interesses’ TF 102)) e próximo (aquele que, livre de todas as etiquetas e estruturas, foi capaz de interromper a sua viagem, mudar os seus programas, estar disponível para se abrir à surpresa do homem ferido que precisava dele’ (TF 101). Ora, esta é a escolha que, constantemente, somos convidados a fazer.

O capítulo que fala do bom samaritano tem por título ‘um estranho no caminho’. Lembra o Papa: ‘ao amor não interessa se o irmão ferido vem daqui ou dacolá. Com efeito, é o amor que rompe as cadeias que nos isolam e separam, lançando pontes; amor que nos permite construir uma grande família onde todos nos podemos sentir em casa. Amor que sabe de compaixão e dignidade’ (TF 62).

Percorrendo esta emblemática parábola de Jesus, o Papa Francisco recorda que vários passaram ao lado da pessoa batida pelos bandidos…foram-se e não pararam. Não pararam o levita e o sacerdote, homens da lei e do templo. Mas houve um que parou, dando tempo ao ferido, evitando a sua morte eminente. (cf TF 63). E o Papa ousa perguntar-nos: ‘Com quem te identificas?’. A conclusão parece óbvia: ‘habituamo-nos a olhar para o outro lado, passar à margem, ignorar as situações até elas nos caírem directamente em cima’ (TF 64).

Seguir o bom samaritano é fazer um exercício de cidadania responsável, dando vida ao bem comum: ‘com os seus gestos, o bom samaritano fez ver que a existência de cada um de nós está ligada à dos outros: a vida não é tempo que passa, mas tempo de encontro’ (TF 66).

Temos que olhar mais para os outros do que para nós, ultrapassando o egoísmo e o individualismo que caracterizam os tempos que correm: ‘viver indiferentes à dor não é uma opção: não podemos deixar ninguém caído nas margens da vida’ (TF 68).

Hoje são muitos os feridos da história. Muita gente se sente excluída, abandonada ferida nas margens das estradas. Somos constantemente convidados a escolher se queremos ser bons samaritanos ou viajantes indiferentes que passam ao largo.

Simplificando, o Papa explica que há dois tipos de pessoas: ‘aquelas que cuidam do sofrimento e as que passam ao largo; aquelas que se debruçam, sobre o caído e o reconhecem necessitado de ajuda e as que olham distraídas e aceleram o passo’ (TF 70).

A história do bom samaritano está sempre a repetir-se. Jesus ‘confia na melhor parte do espírito humano e, com a parábola, anima-o a aderir ao amor, reintegrar o ferido e construir uma sociedade digna de tal nome’ (TF 71).

Há muitas maneiras de passar ao largo, desde o egoísmo até à indiferença. Mas o texto diz algo que nos incomoda: as pessoas que passam ao largo eram religiosas. Isto prova que ‘o facto de crer em Deus e O adorar não é garantia de viver como agrada a Deus’ (TF 74).

Os que passam ao lado tornam-se aliados dos que assaltam no caminho. Muitas vezes nos sentimos como o ferido, atirados para a margem das estradas da vida. A nossa postura tem de ser de cristãos responsáveis: ‘sejamos parte ativa na reabilitação e apoio das sociedades feridas. Hoje temos à nossa frente a grande ocasião de expressar o nosso ser irmãos, de ser outros bons samaritanos que tomam sobre si a dor dos fracassos, em vez de fomentar ódios e ressentimentos’ (FT 77).

Fazer o bem implica não esperar agradecimentos pois, como diz o Papa, ‘todos temos uma responsabilidade pelo ferido que é o nosso povo e todos os povos da terra. Cuidemos da fragilidade de cada homem, cada mulher, cada criança, com a mesma atitude solidária e solícita, a mesma atitude de proximidade do bom samaritano’ (TF 79).

Finalmente, há que olhar para o pedido de Jesus: ‘vai e faz o mesmo’ Não nos restam alternativas pois, os cristãos reconhecem o próprio Jesus em cada irmão abandonado ou excluído’ (FT 85).

E fica uma orientação pastoral importante: ‘a catequese e a pregação devem incluir, de forma clara e direta, o sentido social da existência, a dimensão fraterna da espiritualidade, a convicção sobre a dignidade inalienável de cada pessoa e as motivações para amar e acolher a todos’ (FT 86).

Abrir mundos ao mundo. Cap.III

(Pensar e gerar um mundo aberto, 87-127)

O Papa Francisco, na ‘Fratelli Tutti’, defende que não é possível ‘experimentar o valor de viver sem rostos concretos a quem amar’ (FT 87).  O mundo tem de se abrir mais, melhorando os índices de hospitalidade. Diz ainda que ‘ a estatura duma vida humana é medida pelo amor, que constitui o critério para a decisão definitiva sobre o valor ou a inutilidade duma vida humana’ (FT 92).

É urgente partir em direcção às periferias, algumas delas bem próximas de nós, mesmo nas nossas famílias de sangue. Há que dar atenção a sinais preocupantes de racismo, ‘um vírus que muda facilmente e, em vez de desaparecer, dissimula-se, mas está sempre á espreita’ (FT 97). Também merecem redobrada atenção os ‘exilados ocultos’, como é o caso de pessoas portadoras de alguma deficiência e certas pessoas idosas que não contam para sociedades assentes na competitividade, no sucesso e no lucro.

A globalização não pode formatar todas as pessoas por igual, pois tal destrói a riqueza e a singularidade de cada pessoa e de cada povo’ (FT 100). O futuro da humanidade tem muitas cores, capitalizando a riqueza da diversidade. Há que superar um mundo de sócios para se construir um mundo de irmãos próximos, olhando para a parábola do bom samaritano: ‘livre de todas as etiquetas e estruturas, foi capaz de interromper a sua viagem, mudar os seus programas, estar disponível para se abrir à surpresa do homem ferido que precisava dele’ (FT 101).

‘igualdade e liberdade’ são valores importantes, mas sem a ‘fraternidade’ pouco ou nada de interessante acrescentam à humanidade: ‘para se caminhar rumo à amizade social e à fraternidade universal, há que fazer um reconhecimento basilar e essencial: dar-se conta de quanto vale um ser humano, de quanto vale uma pessoa, sempre e em qualquer circunstância’ (FT 106).

Um crescimento genuíno e integral é condição exigida para se promover o bem moral. A solidariedade começa nas famílias que ‘constituem o primeiro lugar onde se vivem e transmitem os valores do amor e da fraternidade, da convivência e da partilha, da atenção e do cuidado pelo outro. São também o espaço privilegiado para a transmissão da Fé’ (FT 114). A arte do cuidar tem de estar sempre presente, como expressão máxima da solidariedade: ‘o serviço é, em grande parte, cuidar da fragilidade’ (FT 115).

Há que lutar contra ‘todas as causas estruturais da pobreza, a desigualdade, a falta de trabalho, a terra e a casa, a negação dos direitos sociais e laborais’ (FT 116). E, claro, há que apostar numa ecologia integral que obriga a ‘cuidar da casa comum’ (FT 117).

A questão da propriedade também é aprofundada. Diz a Doutrina Social da Igreja que a propriedade privada está sempre submetida à destinação universal dos bens (cf. FT 123) e as sociedades devem ‘garantir que cada pessoa viva com dignidade e disponha de adequadas oportunidades para o seu desenvolvimento integral’ (FT 118).

O desenvolvimento deve ser sustentável e sustentado. Tem de ‘assegurar os direitos humanos pessoais e sociais, económicos e políticos, incluindo os direitos das nações e dos povos’ (FT 122).

As Relações Internacionais têm de mudar a sua forma de compreender o intercâmbio entre países: ‘se toda a pessoa possui uma dignidade inalienável, se todo o ser humano é meu irmão ou minha irmã e se, na realidade, o mundo pertence a todos, não importa se alguém nasceu aqui ou vive fora dos confins do seu próprio país’ (FT 125). Pede-se aos países mais ricos e desenvolvidos que não esmaguem os mais pobres, mas os ajudem a viver com padrões de dignidade, assegurando ‘o direito fundamental dos povos à subsistência e crescimento’ (FT 126).

O Papa Francisco conclui este capítulo terceiro com esperança num futuro melhor: ‘é possível desejar um planeta que garanta terra, tecto e trabalho para todos. Este é o verdadeiro caminho da paz, e não a estratégia insensata e míope de semear medo e desconfiança perante ameaças externas. Com efeito, a paz real e duradoura é possível só a partir de uma ética global de solidariedade e cooperação ao serviço de um futuro modelado pela interdependência e a corresponsabilidade na família humana inteira’ (TF 127).

E muito mais diz este último documento do Papa Francisco. De ‘um coração aberto ao mundo inteiro’ chegaremos à reflexão sobre ‘a melhor política’.  Há que ultrapassar falsas convicções que nos apresentam o migrante como um usurpador que nada oferece, os pobres como perigosos ou inúteis e os poderosos como generosos e benfeitores (cf. FT 141). Lá iremos…

Política com amor. Cap.IV

(Um coração aberto ao mundo, 128-153)

‘Um coração aberto ao mundo’ é tema do IV Capítulo da ‘Fratelli Tutti’. Ao pôr limites às fronteiras que o mundo ergueu, o Papa é claro: ‘os nossos esforços a favor das pessoas migrantes que chegam podem resumir-se em quatro verbos: acolher, proteger, promover e integrar’ (FT 129). Devemos oferecer aos migrantes a possibilidade dum novo desenvolvimento (cf. FT 134) pois, ‘se forem ajudados a integrar-se, eles são uma bênção, uma riqueza e um novo dom que convida a sociedade a crescer’ (FT 135).

Também é preciso fazer um intercâmbio fecundo entre países, pois a ajuda mútua a todos beneficia e faz aumentar a convicção de que, ‘ou nos salvamos todos ou não se salva ninguém’ (FT 137) porque tudo está interligado. No acolhimento, urge cultivar a gratuitidade fraterna evitando comércios calculistas e sem humanidade. Não se podem catalogar os imigrantes como usurpadores que nada oferecem. Muitas vezes se pensa que ‘os pobres são perigosos ou inúteis e os poderosos são generosos benfeitores’ (FT 141). Quanto mais acolhedora e aberta for uma sociedade, mais se geram culturas saudáveis assentes em valores universais. E o Papa Francisco deixa bem claro que ‘hoje nenhum Estado nacional isolado é capaz de garantir o bem comum da própria população’ (FT 153).

É necessária uma política melhor, ‘colocada ao serviço do verdadeiro bem comum’ (FT 154). As opções por políticas populistas e liberais estão a ser negativas para a vida das pessoas pois, ‘em ambos os casos, é palpável a dificuldade de pensar num mundo aberto onde haja lugar para todos, que inclua os mais frágeis e respeite as diferentes culturas’ (FT 155).

O trabalho é a grande oferta que um governo pode fazer aos seus cidadãos, pois assegura a todos uma vida digna e comprometida com a construção da sociedade.

O mercado não resolve todos os problemas e a especulação financeira continua a fazer estragos. Lembra o Papa: ‘a fragilidade dos sistemas mundiais perante a pandemia evidenciou que nem tudo se resolve com a liberdade do mercado(…). Devemos voltar a pôr a dignidade humana no centro e sobre este pilar devem ser construídas as estruturas sociais alternativas de que precisamos’ (FT 168).

Francisco lança um alerta: ‘o séc.XXI assiste a uma perda de poder dos Estados nacionais, sobretudo porque a dimensão económico-financeira, de caracter transnacional, tende a prevalecer sobre a política’ (FT 172). Para evitar este risco, há que reformar a ONU para que ’seja possível uma real concretização do conceito de família das nações’ (FT 173). A fraternidade universal e a paz social exigem uma boa política que não esteja submetida ‘à economia nem aos ditames nem ao paradigma eficientista da tecnocracia’ (FT 177).

O combate à corrupção tem de ser sem tréguas. E só há grandeza política ‘quando se trabalha com base em grandes princípios e pensando no bem comum a longo prazo’ (FT 178). A caridade social é a alma de uma saudável ordem social e política, na busca do bem comum: ‘a caridade está no centro de toda a vida social sadia e aberta’ (FT 184). Os políticos devem ajudar quem é pobre, mas também ‘modificar as condições sociais que provocam o seu sofrimento (…), criando um emprego, exercendo uma forma sublime de caridade que enobrece a sua ação política’ (FT 187). Têm de cuidar dos mais frágeis, daqueles que são vítimas das violações dos direitos humanos.

‘Ainda estamos longe duma globalização dos direitos humanos mais essenciais’ (FT 189). O papa condena a fome criminosa, as toneladas de alimentos que se estragam e o tráfico de pessoas, uma ‘vergonha para a humanidade que a política internacional não deveria tolerar’ (FT 189).

A intolerância fundamentalista também é visada pelo Papa Francisco, pois danifica as relações entre pessoas, grupos e povos e não permite a escuta de vozes diferentes. Pede o Papa: ‘Não nos resignemos a viver fechados num fragmento da realidade’ (FT 191). Aos fundamentalismos unem-se o ódio e o medo.

A Política é uma arte de amar, potenciando ‘as reservas de bem que, apesar de tudo, existem no coração do povo’ (FT 196). Os políticos devem deixar-se vencer pela ternura provocada pelos pobres e frágeis do nosso mundo. Não devemos olhar aos resultados palpáveis, mas à fecundidade da intervenção política: ‘se consigo ajudar uma só pessoa a viver melhor, isso já justifica o dom da minha vida’ (FT 195).

No ar, ficam muitas perguntas, algumas delas dolorosas: ‘em que fiz progredir o povo? Quanta paz social semeei?’ (FT 197). O Papa avança a reflexão ao propor o diálogo rumo à amizade social.

Vozes de várias cores. Caps.V-VI

(A Política melhor, 154-197; Diálogo e Amizade Social, 198-224)

Dialogar implica ‘aproximar-se, expressar-se, ouvir-se, olhar-se, conhecer-se, esforçar-se por entender-se, procurar pontos de contacto’ (FT 198). Tarefa difícil, mas decisiva, até porque as desavenças e os conflitos fazem muito mais notícia.

O diálogo é uma ponte, estabelece um meio termo ‘entre a indiferença egoísta e o protesto violento’ (FT 199). E há que fugir também de toda e qualquer forma de poder manipulador: ‘económico, político, mediático, religioso ou de qualquer outro género’ (FT 201).

Os pontos de vista dos outros têm de ser sempre respeitados para que haja um diálogo social autêntico. Em termos sociais, há que investir muito no debate público que constitui ‘um estímulo que permite alcançar de forma mais adequada a verdade ou, pelo menos, exprimi-la melhor’ (FT 203).

Os meios de comunicação social ajudam-nos a sentir mais próximos dos outros. E, nesta era das tecnologias da informação e redes sociais, ‘a internet pode oferecer maiores possibilidades de encontro e de solidariedade entre todos’ (FT 205). Mas há o reverso da medalha e ‘não podemos aceitar um mundo digital projetado para explorar as nossas fraquezas e tirar fora o pior de nós’ (FT 205).

Procurar consensos é um grande objectivo: ‘aceitar que há valores permanentes, embora nem sempre seja fácil reconhecê-los, confere solidez e estabilidade a uma ética social’ (FT 211).

A fé é valor acrescentado para os crentes. Eles acreditam que ‘a natureza humana, fonte de princípios éticos, foi criada por Deus, que em última análise, confere um fundamento sólido a estes princípios’ (FT 214).

Vinicius de Moraes é citado para evocar a importância da criação de uma nova cultura: ‘A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida’ (FT 215).  O Papa volta à sua tão repetida imagem do poliedro que ‘representa uma sociedade onde as diferenças convivem integrando-se, enriquecendo-se e iluminando-se reciprocamente, embora isso envolva discussões e desconfianças’ (FT 215).

A paz social é muito trabalhosa, exigindo prática. Não se consegue a paz no conforto dos gabinetes, mas na difícil e arriscada vida do dia a dia: ‘o que conta é gerar processos de encontro, processos que possam construir um povo capaz de recolher as diferenças. Armemos os nossos filhos com as armas do diálogo. Ensinemos-lhes a boa batalha do encontro’ (FT 217).

Ninguém pode ser excluído, as periferias também contam, pois a experiência e a história mostram que ‘ignorar a existência e os direitos dos outros provoca, mais cedo ou mais tarde, alguma forma de violência, muitas vezes inesperada’ (FT 219). Sempre com esta convicção profunda e testada de que ‘nenhuma mudança autêntica, profunda e estável é possível, se não se realizar a partir das várias culturas, principalmente dos pobres’ (FT 220).

Há contravalores que é urgente banir das práticas sociais. Um deles é o individualismo consumista, responsável por muitos abusos. O mundo tem de cultivar a amabilidade, pois é fundamental não magoar os outros com palavras ou gestos considerados ofensivos. Antes, ‘supõe dizer palavras de incentivo que reconfortam, consolam, fortalecem, estimulam, em vez de palavras que humilham, angustiam, irritam, desprezam’ (FT 223).

Numa sociedade de alta velocidade, as pessoas parece não terem tempo para gestos simples, mas essenciais. Lembra o Papa que ‘raramente se encontram tempos e energias disponíveis para se demorar a tratar bem os outros, para dizer ‘com licença’, ‘desculpe’, ‘obrigado’’. Há que valorizar as expressões de amabilidade que criam bom ambiente e geram felicidade. A amabilidade – conclui o Papa Francisco – ‘quando se torna cultura numa sociedade, transforma profundamente o estilo de vida, as relações sociais, o modo de debater e confrontar ideias. Facilita a busca de consensos e abre caminhos onde a exasperação destrói todas as pontes’ (FT 224).

Há que rasgar percursos de novos encontros. Ainda há muita sede a matar nesta fonte.

Corações Abraçados. Cap. VII

(Percursos dum novo encontro, 225-270)

O Papa Francisco é claro e direto: ‘em muitas partes do mundo, fazem falta percursos de paz que levem a cicatrizar as feridas, há necessidade de artesãos de paz prontos a gerar, com inventiva e ousadia, processos de cura e de um novo encontro’ (FT 225).

Há que abrir ‘percursos dum novo encontro’, há que ousar ‘recomeçar a partir da verdade’, pois só desta ‘poderá nascer o esforço perseverante e duradouro para se compreenderem mutuamente e tentar uma nova síntese para o bem de todos’ (FT 226), sem nunca esquecer que ‘a verdade é uma companheira inseparável da justiça e da misericórdia’ (FT 227).

Francisco está convencido de que a reconciliação e a construção da fraternidade exigem saber o que se passou: ‘a verdade é contar às famílias dilaceradas pela dor o que aconteceu aos seus parentes desaparecidos (…), o que aconteceu aos menores recrutados pelos agentes de violência (…), é reconhecer o sofrimento das mulheres vítimas de violência e de abusos’. A fraternidade só terá lugar quando se quebrarem as cadeias da violência, pois ‘a violência gera mais violência, o ódio gera mais ódio e a morte mais morte’ (FT 227). A vingança não resolve nada e ‘o perdão permite buscar a justiça sem cair no círculo vicioso da vingança nem na injustiça do esquecimento’ (FT 251).

Os caminhos podem ser difíceis de percorrer, mas é claro que ‘a verdadeira paz só se pode alcançar quando lutamos pela justiça através do diálogo, buscando a reconciliação e o desenvolvimento mútuo’ (FT 229).

As teorias podem ajudar na construção social de um país, mas nada substituirá o compromisso prático: ‘as grandes transformações não são construídas à escrivaninha ou no escritório. (…). Existe uma ‘arquitetura‘ da paz, na qual intervêm as várias instituições da sociedade, cada uma dentro da sua competência, mas há também um ‘artesanato’ da paz que nos envolve a todos’ (FT 231).

Não há paz sem justiça e este é um indicador importante: ‘aqueles que pretendem pacificar uma sociedade não devem esquecer que a desigualdade e a falta de desenvolvimento humano integral impedem que se gere a paz’ (FT 235). E não se podem nunca esquecer os últimos, os descartados, os mais frágeis.

Outros temas grandes são o perdão (que ‘não implica esquecimento’ (FT 250)) e a reconciliação, valorizados pelo cristianismo e por muitas religiões. O Papa deixa claro que ‘Jesus Cristo nunca convidou a fomentar a violência ou a intolerância’, pois ‘o Evangelho pede para perdoar setenta vezes sete’ (FT 238). Há lutas legítimas pela defesa dos direitos e da dignidade, mas ‘o importante é não alimentar um ódio que faz mal à alma da pessoa e à alma do nosso povo’ FT 242), mesmo sabendo que ‘não é tarefa fácil superar a amarga herança de injustiças, hostilidades e desconfiança deixada pelo conflito’ (FT 243).

A história mostra como são difíceis as cicatrizações da violência, mas ‘a verdadeira reconciliação não escapa do conflito, mas alcança-se dentro do conflito, superando-a através do diálogo e de negociações transparentes, sinceras e pacientes (FT 244).

Não se deve propor nunca o esquecimento. ‘A Shoah não deve ser esquecida’ (FT 247), nem ‘os bombardeamentos de Hiroxima e Nagasaki’ (FT 248), nem ‘perseguições, comércio dos escravos, massacres étnicos’ (FT 248) para não se voltarem a cometer atrocidades dessa dimensão. Mas também ‘é muito salutar fazer memória do bem’ (FT 249).

Finalmente, o Papa Francisco agarra dois temas quentes: a guerra e a pena de morte. A guerra ‘é a negação de todos os direitos e uma agressão dramática ao meio ambiente’ (FT 257). Após descoberta das armas nucleares, químicas e biológicas destruiu-se a lógica de uma eventual guerra justa, dado o seu poder destrutivo: ‘já não podemos pensar na guerra como solução, porque os riscos sempre serão superiores à hipotética utilidade que se lhe atribua. Nunca mais a guerra’ (FT 258). O Papa não tem dúvidas de que ‘toda a guerra deixa o mundo pior do que o encontrou. É um fracasso da politica e da humanidade, uma rendição vergonhosa, uma derrota perante as forças do mal.(…). Interroguemos as vítimas’ (FT 261).

E aí vem a grande proposta: ‘com o dinheiro usado em armas e outras despesas militares, constituamos um fundo mundial para acabar de vez com a fome e para o desenvolvimento dos países mais pobres’ (FT 262).

Também a pena de morte é visada: ‘hoje não é admissível e a Igreja compromete-se decididamente a propor que seja abolida em todo o mundo’ (FT 263). Há que lutar por condições dignas nas prisões e pela abolição da prisão perpétua, ‘uma pena de morte escondida’ (FT 268).

É preciso seguir Isaías que anunciou: ‘transformarão as suas espadas em relhas de arado’ (FT 270). Só de corações abraçados se constrói a fraternidade.

Fraternidade Crente. Cap. VIII

(As Religiões ao serviço da Fraternidade no mundo, 271-287)

O Papa Francisco tem uma longa experiência de diálogo ecuménico e inter-religioso e não tem dúvidas de que ‘as várias religiões oferecem uma preciosa contribuição para a construção da fraternidade e a defesa da justiça na sociedade’ (FT 271). O nosso contributo especifico de pessoas crentes é o de acreditarmos num ‘fundamento único’: ‘como crentes, pensamos que, sem uma abertura ao Pai de todos, não podem haver razões sólidas e estáveis para o apelo à fraternidade’ (FT 272).

A nossa experiência de fé esclarecida e vivida, acumulada ao longo de milénios, fornece-nos a convicção de que ‘tornar Deus presente é um bem para as nossas sociedades’ (FT 274). E a história também nos diz que aprendemos com inúmeras fraquezas e quedas.

Vivemos tempos marcamos pela exclusão da dimensão religiosa do espaço público. O Papa Francisco pede para se rever esta atitude pois, segundo ele, ‘não se pode admitir que, no debate público, só tenham voz os poderosos e os cientistas. Deve haver um lugar para a reflexão que provém de um fundo religioso que recolhe séculos de experiência e sabedoria’ (FT 275).

Ao olhar para a Missão da Igreja, o Papa lembra ao mundo que, além dos âmbitos da assistência social e humanitária e da educação, a Igreja ‘busca a promoção das pessoas e a fraternidade universal’ (FT 276). E deve cumprir a sua missão sem exclusões porque é ‘uma casa com as portas abertas, porque é Mãe’ (FT 276).

O diálogo com as outras Religiões é valorizado porque nelas há muito de verdadeiro e santo. Mas temos algo de específico a dar ao mundo: ‘como cristãos, não podemos esconder que, ‘se a música do Evangelho pára de vibrar nas nossas entranhas, perderemos a alegria que brota da compaixão, a ternura que nasce da confiança, a capacidade da reconciliação que encontra a sua fonte no facto de nos sabermos sempre perdoados-enviados. Se a música do Evangelho cessar de repercutir nas nossas casas, nas nossas praças, nos postos de trabalho, na política e na economia, teremos extinguido a melodia que nos desafiava a lutar pela dignidade de todo o homem e mulher’ (FT 277). Reconhecemos a riqueza de outros que bebem de outras fontes.

Habitualmente, os documentos pontifícios terminam com uma referência a Maria. Aqui vem antes: ‘para muitos, este caminho de fraternidade tem também uma Mãe, chamada Maria. Ela recebeu junto da Cruz esta maternidade universal e cuida não só de Jesus, mas também do resto da sua descendência. Com o poder do Ressuscitado, Ela quer dar à luz um mundo novo, onde todos sejamos irmãos, onde haja lugar para cada descartado das nossas sociedades, onde resplandeçam a justiça e a paz’  (FT 278).

Francisco volta ao tema quente e atual da liberdade religiosa e pede aos líderes políticos do mundo inteiro que, onde os cristãos são minoria, lhes seja dada a liberdade de culto e de missão. Essa mesma liberdade seja também favorecida a crentes de outras religiões nos países de maioria cristã. Tudo isto porque ‘existe um direito humano fundamental que não deve ser esquecido no caminho da fraternidade e da paz: é a liberdade religiosa para os crentes de todas as religiões’ (FT 279).

A unidade plural dentro da Igreja também é condição de fraternidade: ‘unidade que se enriquece com diferenças que se reconciliam pela ação do Espírito Santo’(FT 280).

A religião nunca caminha de mãos dadas com a violência. Mas abre espaços comuns de solidariedade: ‘Os crentes precisam de encontrar espaços para dialogar e atuar juntos pelo bem comum e a promoção dos mais pobres’ (FT 282). E deve ficar claro que ‘a violência não encontra fundamento algum nas convicções religiosas fundamentais, mas nas suas deformações’ (FT 282). Daí a urgência de ‘interromper o apoio aos movimentos terroristas através do fornecimento de dinheiro, armas, de planos ou justificações e também a cobertura mediática, e considerar tudo isto como crimes internacionais que ameaçam a segurança e a paz mundial. É preciso condenar tal terrorismo em todas as suas formas e manifestações’ (FT 283).

Deus não precisa que ninguém o defenda em seu nome e cada líder religioso deve ser um mediador autêntico, ‘artífice da paz, unindo e não dividindo, extinguindo o ódio em vez de o conservar, abrindo caminhos de diálogo em vez de erguer novos muros’ FT 284).

Fratelli Tutti termina com uma Oração ao Criador e uma Oração cristã ecuménica. A mensagem final do Papa é clara: ‘Em nome de Deus e de tudo isto (…) declaramos adotar a cultura do diálogo como caminho; a colaboração comum como conduta; o conhecimento mútuo como método e critério’ (FT 285).

O mundo precisa de referências e o Papa pede para olharmos as vidas de Luther King, Desmond Tutu, Gandhi e Carlos de Foucauld. São luzes de fraternidade universal para os caminhos dos tempos que são os nossos.

Tony Neves CSSp, em Roma

O vento da mudança. Histórias de vida e ministerialidade social

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Os combonianos e as combonianas nasceram graças ao Plano de São Daniel Comboni de regenerar a África com a própria África. O Plano foi publicado pela primeira vez em 1864, mas foi revisto e actualizado pelo próprio Comboni nada menos que sete vezes: foi uma inspiração do Alto, fruto do amor compassivo do Bom Pastor para com a África que Comboni chamava «a pérola negra»; mas também uma participação a partir de baixo, com expressões diversas de missão, estratégias, envolvimento de grupos eclesiais, filantrópicos, cientistas e geógrafos, pela procura de pessoal e fundos para a sua realização.

Os biógrafos de Comboni reconhecem-lhe algumas características fundamentais, entre as quais a sua clarividência prática e dinâmica e a sua inquebrantável confiança na regeneração da África, não obstante os obstáculos, as cruzes, as incompreensões, as críticas e as calúnias; prova disso é que dois africanos, Daniel Sorur Pharim Den (1860-1900) e Fortunata Quascè (1845-1899), ambos sudaneses e resgatados à escravatura, na visão inclusiva da obra comboniana, abraçaram de imediato o Plano e, através do seu ministério, revelaram a sua eficácia.

O primeiro descreveu a real condição dos Negros e sublinhou que a regeneração dos africanos só podia realizar-se com duas condições: quebrar o jugo da escravatura e oferecer aos africanos as mesmas oportunidades de formação que eram dadas a todos os outros povos. A segunda dedicou toda a sua vida à formação e à preparação das meninas africanas, para que por sua vez, libertadas da escravatura, criassem no coração da África negra processos de regeneração.

Desde há mais de 150 anos, os herdeiros de Comboni, iluminados do Alto, com a mesma determinação e com a mesma confiança; movidos pelo amor compassivo pelos mais pobres e abandonados, deram forma ao sonho de regenerar a África através do ministério social, adaptando o plano aos tempos e aos lugares, no sopro do Espírito que «renova a face da terra» (Sl 103, 30). O património importante a conhecer e a valorizar, sobretudo hoje, para enfrentar um sistema neoliberal de predadores ávidos, que concentra a riqueza nas mãos de poucos e promove a cultura do descarte, excluindo milhões de pessoas das condições de vida plena.

Eis porque para 2020, o ano que os missionários combonianos dedicaram à ministerialidade, as direcções gerais da família comboniana, consagrados, seculares e leigos, pediram a uma comissão, nomeada ad hoc, para publicar um livro no qual sejam narradas algumas histórias de vida vivida na ministerialidade social. Ao mesmo tempo, alargar a pesquisa através de um mapeamento das nossas presenças e empenhos, que envolve as comunidades da família comboniana, espalhadas nos quatro continentes. Propúnhamo-nos:

  • Elaborar critérios e princípios comuns nas experiências existentes de colaboração enquadrando-as numa perspectiva institucional.
  • Avaliar de que modo as várias ministerialidades têm um impacto de transformação social sobre a realidade e como a nossa presença ministerial responde a uma verdadeira exigência dos sinais dos tempos.

Este trabalho foi sem dúvida ambicioso, mas ao mesmo tempo limitado, no sentido que é sempre difícil encerrar num escrito a riqueza do vivido. Até porque há o embaraço da escolha entre as experiências de 3500 missionários consagrados, consagradas, seculares, leigos e leigas que trabalham segundo o carisma comboniano, em África, nas Américas, na Ásia e na Europa.

O livro intitulado «Nós somos missão. Testemunhos de ministerialidade social na família comboniana», foi publicado em Junho de 2020, em quatro línguas (italiano, inglês, espanhol e francês). O trabalho foi o fruto da colaboração de 61 missionárias e missionários, convidados a relatar a sua vivência ministerial social; além disso, dois especialistas externos fizeram uma leitura sapiencial do material, indicando os pontos fortes do empenho ministerial e as dificuldades a resolver para uma maior eficácia na mudança do sistema.

As narrações e as partilhas feitas neste texto, ajudam a compreender que, embora na multiplicidade das situações, das abordagens e das iniciativas, a dimensão social é o eixo transversal de todo o ministério; no sentido que todo o serviço, entendido como dom de Deus, pela sua própria força intrínseca, proclama a libertação dos oprimidos, «o ano de graça» (Lc 4, 18-19) e revela às gentes «os novos céus e a nova terra» (Ap 21, 1) no projecto original e providencial de Deus.

A narração da práxis da ministerialidade social, por esta razão, enriquece o paradigma de referência da missão, sempre mais encarnada na complexidade do mundo de hoje e atenta a ler os sinais dos tempos e dos lugares, para poder reanunciar a todos os povos a fé em Jesus Cristo, com linguagem e estilos de presença adequados.

O processo iniciado será longo e gradual no tempo, mas poderá valer-se de alguns temas e sugestões salientados nestas partilhas e noutras que serão expressas no mapeamento geral da família comboniana. Um momento de encontro, aprofundamento, síntese, discernimento e relançamento está também previsto no Fórum sobre a ministerialidade social comboniana em Roma, no próximo mês de Dezembro de 2020.

Não se parte do zero ou de teorias, mas de acontecimentos vividos e narrados na quotidianidade da missão comboniana, que se podem sintetizar com alguns verbos:

Ver: com «olhos penetrantes e coração aberto» para colher os desafios e as oportunidades para o anúncio do Evangelho.

Tornar-se próximo: na dinâmica de uma Igreja missionária e «em saída», que vive nas margens e toca as feridas dos irmãos e das irmãs, levando em si o cheiro das ovelhas e o estilo de vida dos pobres.

Encontrar: vivendo e promovendo a mística do encontro. Professar a catolicidade e encurtar a distância entre credos e culturas, através do diálogo e do ecumenismo, para uma fraternidade global.

Regenerar: deixar-se desafiar pela realidade e esforçar-se por encontrar os cinco pães e os dois peixes dos pequenos, a esmola da viúva, a água da purificação dos povos.

Transformar: não há mais tempo para alterações; é tempo de mudança! É tempo de enfrentar as causas que geram as desigualdades entre as pessoas e entre os povos e a cultura do descarte.

Celebrar: Tudo aquilo que dá consistência ao ministério social e configura os discípulos e as discípulas ao mistério Pascal de Cristo, sustento da fé na quotidianidade da missão.

Repartir: No olhar do Espírito não há mais espaço para a autoglorificação e a vanglória; tudo é provado na chama do fogo que purifica e impele a ousar e repartir por caminhos e estradas inéditos, para que sejam sempre mais as vias de Deus.

Os âmbitos da ministerialidade social

O coração da ministerialidade social é o pôr-se à escuta do grito dos pobres, aliar-se com eles, para que as suas expectativas se realizem e os tornem capazes de transformação; na lógica evangélica do Senhor: «que, sendo rico, se fez pobre por vós, para vos enriquecer com a sua pobreza» (2 Cor 8, 9).

Como Família Comboniana, trabalhamos desde sempre na dimensão social: formação das consciências e preparação dos líderes profissionais; meios de comunicação; cuidado e atenção às pessoas, saúde e educação; periferias existenciais e geográficas (como por exemplo o cuidado dos meninos da rua, situações de guerra e de conflito, minorias étnicas; o tráfico de menores e de mulheres; direitos humanos; prisões, pastores nómadas…); mobilidade humana e pastoral dos migrantes; salvaguarda da criação; liturgia e catequese.

Perspectivas

O processo iniciado ao acentuar a dimensão social da ministerialidade não pode nem deve ser considerado como uma acção de circunstância e limitado no tempo. É um longo caminho, segundo a tradição viva da Igreja. Deve ser sustentado, alimentado e revisto no ritmo acelerado da mudança epocal, a fim de dar eficácia e criatividade à presença missionária e carismática da Família Comboniana no mundo de hoje.

A dimensão social na ministerialidade convida, por isso, a rever a ideia de missão. Um convite à Família Comboniana a reflectir sobre aquilo que quer ser e quer realizar para o bem da humanidade na construção do Reino de Deus. O fio condutor é sempre a missão, com estas características particulares:

  • a transformação do sistema que gera a cultura do descarte;
  • a promoção do Evangelho do cuidado das pessoas, através da proximidade e a compaixão samaritana;
  • a sinodalidade, no envolvimento e na comparticipação efectiva de todos os ministérios;
  • a conversão ecológica, conscientes de que salvaguardando a casa comum criaremos as condições de vida digna para todos, especialmente para os excluídos.

Eis porque o título do livro «Nós somos missão», se torna um apelo à missão, vivida como comunidade de regenerados e comunhão comboniana entre irmãs, irmãos e leigos, sempre mais articulados e interligados com outros grupos e associações eclesiais e laicais, como parte integrante do povo de Deus.

Este processo de mudança amplifica o sonho comboniano de regenerar a África com a África na perspectiva do grande sonho do Papa Francisco, expresso na Exortação Apostólica pós-sinodal «Querida Amazónia»: o sonho da construção de uma nova sociedade com a inclusão dos «descartados» e um novo pacto social para o bem comum. O sonho cultural de uma humanidade plural; o sonho ecológico onde tudo está interligado e o empenho em salvar a terra garante o futuro para a humanidade inteira. Por fim, o sonho eclesial, bem simbolizado pela imagem de «hospital de campo», mergulhada na vida e na realidade dos pobres e marginalizados, que toca as feridas dos irmãos e irmãs e derrama o óleo da paz e da reconciliação.
Fernando Zolli e Daniele Moschetti

O papel ministerial do irmão

Joel Cruz
Joel Cruz

ENCARNAÇÃO DA PALAVRA, FRATERNIDADE E PROMOÇÃO HUMANA

O Irmão Joel Cruz Reyes, comboniano mexicano, trabalhou cerca de 12 anos no Equador. Aqui, conta-nos a sua experiência missionária, destacando as características do ministério do Irmão a partir da promoção humana que tem como fundamento a Palavra.

1. Encontro com a missão

Em 1997, cheguei ao Equador, para ir trabalhar no Centro Cultural Afro-Equatoriano, na cidade de Guayaquil. Nessa altura, o acompanhamento dos afrodescendentes girava em torno da religiosidade, da formação litúrgico-sacramental e sociopolítica, com o objectivo de os tornar social e eclesialmente visíveis. Com esta finalidade, procurava-se o apoio de especialistas leigos em psicologia, antropologia, sociologia e política.

Pelo comportamento, pelas atitudes e motivações que percebi nos Afros que vinham ao Centro, dei-me conta que a sua dependência do missionário era crónica. Tinham-se habituado a considerar-se material, espiritual e moralmente indigentes. Certamente, este comportamento era o reflexo das sombras da sua história que se reflectiam no presente, mas também era consequência da visão paternalista de quem os acompanhavam. Esta realidade impedia-os de crescer humana e espiritualmente, reduzindo-os mais à condição de objecto do que de sujeitos, desde o ponto de vista eclesial e social.

2. Entender e iniciar processos

Pouco a pouco, fui compreendendo que estes processos, embora fossem muito bons, estavam desligados da fé e da Palavra, como se a regeneração do ser humano afro fosse apenas um problema humano e social. Dei-me conta de que os processos não chegavam à compreensão do afrodescendente como filho de Deus, imagem e semelhança d’Ele, esculpido pela história, por circunstâncias sociais e eclesiais adversas, sim, mas no fim de contas um ser humano pensado, querido por Deus e com uma missão específica na Igreja, na sociedade e no mundo.

Os resultados eram lógicos porque, por um lado, o acompanhamento piramidal herdado pela tradição pastoral predominante na Igreja tornava-os objecto dependentes da acção do sujeito que era o missionário. Por outro lado, a intervenção de especialistas leigos sem uma visão religiosa, de fé e desligados da Palavra de Deus, não podia oferecer mais do que uma forma de ver o afrodescendente e a sua história, como um problema pessoal e social. Não se viam a si próprios como seres humanos, mas como um problema social e um objecto de abuso, de maus tratos e de exclusão. Estavam convencidos de que eram apenas vítimas e não seres humanos com uma responsabilidade eclesial e social.

3. Presença que partilha a vida

Quando comecei a caminhar com eles, percebi que a presença do Irmão que, pela sua natureza vocacional, está despojado do sagrado (do sacramento da ordem), pouco a pouco vai arredondando a pirâmide relacional nas estruturas culturais, sociais e eclesiais, até consolidar a circularidade da fraternidade ministerial querida por Jesus. O Irmão, precisamente por ser religioso, é capaz de contemplar a humanidade das pessoas que acompanha e de pôr essa humanidade em movimento (promoção humana) na Igreja e na sociedade.

Compreendi que o Irmão é uma ponte entre a ciência e a fé, entre o Evangelho e a sociedade, entre a Igreja e o mundo, entre a vida religiosa e a secular, entre o ministério sacerdotal e laical. Sem a sua presença, muitas vezes, os processos tornam-se polarizadores: de um lado, o litúrgico-sacramental, e do outro, o político-social. E o Irmão tem um pé em cada extremidade. Portanto, o Irmão é capaz de equilibrar os processos de evangelização e de fazer com que o ser humano não veja a sua história como uma tragédia humana sem Deus, mas sim uma história sagrada de salvação, onde Deus não só está presente como também se faz carne e assume as causas do ser humano como suas.

4. Os milagres da fraternidade

O Senhor deu-me a oportunidade de ver os milagres da fraternidade que brotam da consciência de saber que somos todos irmãos e irmãs, filhos do mesmo Pai; com a mesma dignidade e responsabilidade missionária de Cristo e, por isso, entendendo-se como o Corpo Negro de Cristo nessa sociedade discriminatória e exclusiva que tanto ofuscou a Igreja nesse contexto. Deu-me a oportunidade de experimentar o poder libertador deste tornar-se mais um entre eles, de não ter medo de rebaixar-se, tal como Jesus, e de procurar com eles os caminhos, as respostas e as soluções.

Este estar entre os afrodescendentes como companheiro de viagem, e não como guia ou mestre, fez com que as pessoas começassem a saborear e a gostar da comunhão e da participação, a compreender o valor e o poder do cenáculo de apóstolos, sonhado por São Daniel Comboni. Assim, nasceu a Fraternidade dos Missionários Afro-Equatorianos, o Caminho Bíblico Afro, processos de etno-educação e recreação cultural num contexto urbano, organizações e associações afro com objectivos culturais e sócio-políticos, e a pastoral da juventude afro.

O caminho fraterno com os Afros permitiu-me constatar como o objecto foi transformado em sujeito social e eclesial. E tudo começou quando eles se descobriram como seres humanos, filhos de Deus, missionários do Pai. E esta consciência semeia-se vivendo com eles, discutindo com eles, como Jesus fez com os seus discípulos: na estrada, na casa, na festa, nos seus lugares… conversando, respondendo a preocupações, explicando, partilhando sem pressa, sem lugares fixos… muitas vezes longe do templo.

Esta consciência semeia-se vivendo com eles, discutindo com eles, como Jesus fez com os seus discípulos: caminhando, em casa, nas festas, por toda a parte… conversando, respondendo às inquietações, explicando, partilhando sem pressa, sem lugares fixos… muitas vezes longe do templo.

Tendo experimentado o poder regenerador da fraternidade no ser humano, fez-me pensar e imaginar o Irmão Missionário Comboniano como uma parteira de ministérios laicais que vão para além das estruturas do templo e das questões religiosas. De uma ministerialidade que toca as realidades humanas e sociais; como companheira daqueles ministérios que nascem com uma projecção secular, a fim de lhes infundir o Espírito e possam ser a força transformadora de Deus na sociedade.

O caminhar com as pessoas fez-me reconhecer como um Irmão religioso, ou seja, um perito em estabelecer a profunda ligação entre o mundo e Deus, entre a carne e o espírito, entre o humano e o divino. Um especialista em ajudar o ser humano a conceber a Deus como um cidadão que actua naquele meio social em que se encontra, através do ser humano que se reconhece a si próprio como a sua presença.

5. Questionamentos olhando para o futuro

Como assegurar que a fraternidade que promove a humanidade das pessoas se fortaleça e não termine diluída na tradição evangelizadora que olha mais para o litúrgico-sacramental? Como tornar mais visível e significativo o ministério da encarnação da Palavra nos ministérios que tocam as questões humanas e sociais no Instituto, na Igreja e na sociedade? Estas perguntas encontrarão a resposta na proposta feita por São Daniel Comboni de estabelecer Centros de Formação onde o africano não se alteraa e o missionário não morre.

Esta estratégia pareceu-me ser a mais apropriada para a realidade numérica e dispersa do Irmão no Instituto e, assim, poder pensar numa figura física que acompanhe o ministério do Irmão, o identifique, o defina e o torne mais compreensível. Por isso, tal como o padre se relaciona com a imagem da paróquia, uma estrutura que explica e torna compreensível o seu ministério, assim também comecei a imaginar uma obra que pudesse revelar toda a força ministerial da fraternidade no Instituto. Assim nasceu a ideia das Obras Combonianas de Promoção Humana (OCPHs) e o Centro Cultural Afro-Equatoriano de Guayaquil tornou-se a primeira destas obras.

Para a reflexão pessoal e comunitária:

  1. O que é que me chama mais à atenção nesta experiência religiosa? Porquê?
  2. O que suscita em mim esta experiência? Porquê?
  3. O que é que nos diz a nós mesmos como comunidade?
  4. Que parte ou partes desta experiência podem iluminar o trabalho paroquial ou projectos missionários nas nossas comunidades/missões?

PARA APROFUNDAR O TEMA

Orientações do Papa Francisco e Bento XVI sobre a fraternidade

Reflexões retiradas do documento “Notas para uma espiritualidade missionária da fraternidade” do Irmão Alberto Degán.

Neste terceiro milénio, o Papa propõe uma missão fascinante: combater a “globalização da indiferença” através da construção da “globalização da fraternidade”.  Naturalmente, este é um apelo para todos os cristãos, mas, sobretudo para nós Irmãos, este apelo suscita, sem dúvida, um sentimento de alegria e reclama uma responsabilidade particular.

  • As duas primeiras mensagens do Papa Francisco para o Dia Mundial da Paz (em 2014 e 2015) são inteiramente dedicadas ao tema da fraternidade. “A fraternidade é o fundamento e o caminho para a paz”, diz-nos Francisco. De facto, a paz e a justiça não são apenas uma questão técnica de fazer mudanças estruturais para diminuir as desigualdades escandalosas que caracterizam o mundo de hoje, nem são apenas uma questão política. Paz e justiça são, acima de tudo, um desafio espiritual: só se nos sentirmos irmãos, filhos do mesmo Pai, é que as pessoas estarão prontas a fazer as mudanças e os sacrifícios necessários para dar vida a uma sociedade justa e fraterna. Como disse Francisco na mensagem Urbi et orbi no Natal de 2018, “sem a fraternidade que Jesus Cristo nos testemunhou, os nossos esforços por um mundo mais justo não iriam muito longe” (Salmo 84, 11-12).
  • O Papa Bento XVI propôs a fraternidade como princípio económico: “O desenvolvimento económico, social e político necessita, para ser autenticamente humano, de dar lugar ao princípio da gratuidade como expressão de fraternidade”, afirma na sua encíclica Caritas in Veritate (CV), n. 34. E acrescenta: “O grande desafio que temos… é mostrar… que nas relações comerciais o princípio da gratuidade e a lógica do dom, como expressão de fraternidade, pode e deve ter lugar na actividade económica ordinária” (CV 36). Bento XVI propõe que a lógica da fraternidade deve reconfigurar o nosso sistema económico.
  • Mais recentemente, o Papa Francisco dedicou toda a mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2014 ao tema da fraternidade: “A fraternidade, fundamento e caminho para a paz”. Os subtítulos das diferentes partes deste documento são: “Sois todos irmãos, (Mt 23,8)”, “A fraternidade, premissa para vencer a pobreza“, “A redescoberta da fraternidade na economia“, “A fraternidade extingue a guerra“, “A fraternidade gera paz social“, “A fraternidade ajuda a proteger e a cultivar a natureza“. Basta dar uma olhadela rápida a estes subtítulos para se entender que, para o papa Francisco, a fraternidade – longe de ser um conceito aleatório e romântico – é um princípio de fé muito concreto com inevitáveis implicações sociais, políticas e económicas. Segundo o Papa, a justiça social não pode ser construída se não cultivarmos primeiro um profundo sentido de fraternidade nos nossos corações.
  • A primeira parte deste documento intitula-se “Onde está o teu irmão? (Gn 4,9). Na Bíblia, esta é a segunda pergunta que Deus dirige ao homem, e isto significa que para Deus é uma questão fundamental. O ser humano, tal como foi concebido pelo nosso Criador, realiza a sua humanidade quando deixa o seu egoísmo e se preocupa com as condições de vida dos seus irmãos e irmãs, quando entra numa lógica de comunhão e fraternidade que o faz perceber que a sua vida só tem sentido se for vivida numa atitude de solidariedade para com os seus semelhantes. Por outras palavras, para Deus ser humanos significa ser e sentirmo-nos irmãos.
  • Jesus apresenta-se a nós como o “primogénito no meio de muitos irmãos” (Rom 8,29): a fraternidade é o caminho traçado por Deus para a realização da nossa humanidade. Como diz um provérbio africano: “Eu sou um ser humano porque tu és um ser humano”, ou seja: “Sinto-me bem e posso realizar a minha humanidade quando vejo que os meus irmãos também estão bem e podem realizá-la”. Mas na nossa sociedade prevalece a lógica oposta, a do velho adágio latino “Mors tua vita mea“, que significa: “A tua morte é a minha vida“; “só se eu te matar e tomar posse dos teus bens poderei viver feliz”.

Assim, não nos surprende que Helmut Maucher – presidente da multinacional Nestlé nos anos 80 e 90 – tenha mesmo dito que precisava de executivos com instinto assassino. Desta forma, como afirma o economista Hinkelammert, “a luta para matar o outro é vista como fonte de prosperidade e de vida”. Assim, o evangelizador propõe o modelo e a espiritualidade do homem-irmão contra o modelo e a espiritualidade do homem-assassassino.

Para combater a injustiça e a pobreza, precisamos de uma revolução espiritual, de uma espiritualidade de fraternidade que nos faça compreender que a derrota e a morte do meu irmão será também, mais cedo ou mais tarde, a minha derrota e a minha morte. Como disse Martin Luther King, “ou conseguiremos viver todos como irmãos ou morreremos todos como néscios”.

  • Na Evangelii Gaudium (n.186), Francisco afirma que o nosso amor pelos “mais abandonados da sociedade” depende “da nossa fé em Cristo que está sempre próximo dos pobres“. Sem dúvida, face a tantos desafios enormes, sentimo-nos frequentemente pequenos e impotentes: não temos respostas imediatas sobre O QUE FAZER. Mas Jesus dá-nos uma indicação muito clara sobre ONDE ESTAR: hoje, como ontem, Jesus “sempre perto dos pobres” chama-nos a estar PERTO DOS POBRES, PERTO DOS ÚLTIMOS.

O nosso Capítulo Geral de 2015 aceitou este convite do Papa e, por conseguinte, indicou como primeiro critério para requalificar os nossos compromissos o critério da “proximidade aos pobres” (DC’ 15, n.44.5). Este é um critério que para nós, os Irmãos Combonianos, tem um valor especial, porque o nosso Fundador nos via como aqueles que estão mais próximos das pessoas, porque passamos mais tempo com elas: Na África Central os irmãos artesãos bem preparados contribuem mais para o nosso apostolado que os sacerdotes para a conversão, porque os alunos negros e os neófitos (a maior parte dos quais, seja para aprender o ofício seja para trabalhar, há-de permanecer um espaço de tempo bastante longo com os «mestres» e os «especialistas», que com as palavras e o exemplo são verdadeiros apóstolos para os seus alunos) estão com os irmãos leigos e observam-nos e escutam-nos mais do que podem observar e escutar os sacerdotes.(E 5831).

Nota: Ver também a última encíclica do Papa Francisco “Fratelli Tutti” sobre a fraternidade e amizade social (3 de Outubro de 2020).

PARA A Oração pessoal

E o Verbo fez-se homem e veio habitar connosco. E nós contemplámos a sua glória, a glória que possui como Filho Unigénito do Pai, cheio de graça e de verdade.” (Jo 1,14)

Reflexões a partir dos encontros continentais de Irmãos na América:

  • No meio de uma mentalidade e tradição eclesial que aprisiona a Palavra de Deus nos templos, nos discursos teóricos e que dificilmente ousa ir além das estruturas eclesiais e tocar as questões humanas e sociais, insere-se a figura ministerial do Irmão Missionário Comboniano.
  •  A sua vocação de “fazer carne a palavra”, no contexto onde vive e convive, e para modelar o ser humano como filho de Deus e irmão de todos, leva-o a abrir caminhos e a tomar iniciativas que não se limitem às estruturas e tradições eclesiais, porque a “encarnação missionária da Palavra” vive-se em harmonia com os tempos e lugares onde se encontra.
  • O espírito fraterno de Deus leva-o à inserção na vida e no quotidiano das pessoas, pelo que é capaz de descobrir e resgatar a riqueza e experiência de cada pessoa e dos grupos humanos que acompanha missionariamente, com o objectivo de valorizar a Igreja e a sociedade e de promover o verdadeiramente humano dos povos por onde passa, como obra e revelação de Deus que deve ser conhecida, reconhecida, valorizada, assumida e proposta pela Igreja ao mundo.
  • A convivência fraterna com as pessoas, a partir da consciência e do espírito missionário, faz do Irmão um radar que capta os sinais, os ruídos, e os desafios que, naquele lugar e naquele momento, se estão a viver. Por isso, a sua palavra e o seu contributo são decisivos para o dinamismo, a criatividade e a actualização da missão comboniana.
  • O seu rosto fraterno evangélico e social, faz do Irmão uma ponte entre a sociedade e a Igreja, entre o secular e o religioso, entre os leigos e o clero. É precisamente por esta razão que se torna a face social do compromisso missionário da Igreja. Esta dimensão vocacional insere-o no núcleo da sensibilidade humana que procura solidariedade, justiça, paz, e um compromisso de transformação social. A sua vocação faz dele uma presença que fortalece a consciência e o espírito do ser humano a viver o Reino como justiça, paz, alegria (Rm 14, 17ss.
  • O papel do Irmão como pessoa consagrada e ministro de Cristo, então, é a edificação e o crescimento humano e cristão das pessoas e das comunidades, desde a perspectiva do Evangelho; pelo que, a sua acção não exclui o ministério da Palavra. A sua presença evangelizadora entre as pessoas enfatiza a dimensão da fraternidade em todos os seus aspectos: o desenvolvimento integral das pessoas, a promoção da justiça, da paz, dos direitos humanos… ou seja, o seu ministério toca directamente as questões sociais, antropológicas e culturais, na óptica do Reino de Deus.

PARTILHA COMUNITÁRIA
E PISTAS DE ACÇÃO

  1. Numa atmosfera de oração e escuta mútua, partilhemos em comunidade os frutos da oração pessoal.
  2. Reflitamos juntos:
    1. O que te faz pensar, tendo presente o que partilhámos e rezámos sobre o ministério do Irmão?
    1. A que é que o Espírito nos convida a nível pessoal, comunitário, de Província e de Instituto?
    1. Como é que podemos responder de maneira concreta aos apelos do Espírito?

“O ministério dos Irmãos, discípulos de Cristo fraterno, presta atenção à dimensão da fraternidade em todos os seus aspectos, incluindo o desenvolvimento integral das pessoas, a promoção da justiça, da paz e dos direitos humanos. É, portanto, um ministério predominantemente aberto às dimensões social, antropológica e cultural do Reino de Deus, orientado para a transformação social, o testemunho e a proclamação da fraternidade e a animação da comunidade cristã”.

SUGESTÕES PARA A CELEBRAÇÃO DA EUCARISTIA:

No momento do PAI-NOSSO, fazer um momento prolongado de silêncio para pensar na fraternidade que nasce de Deus.